junho 26, 2009

Irresistível

Sofri um acesso de incontrolável identificação ao ver a capa de Veja. A revista fala exatamente o que eu gostaria de repetir, em alto e bom som, à politicalha que comanda este país: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Foi como se o meu rosto estivesse ali, compondo a capa, encimado pelo grito de revolta que, certamente, percute na consciência de todos os que têm um mínimo de capacidade crítica: “Basta de impunidade!”.

Depois, na longa reportagem “À sombra da Constituição”, o texto enxuto, claro, preciso, é acompanhado por dezenas de declarações que, em qualquer democracia civilizada, obrigariam o presidente da República a, no mínimo, ficar de joelhos e proferir um mea-culpa. O que, é evidente, não acontecerá aqui.

Deliciosamente mordaz, a revista também me presenteou com a legenda da página 65, na qual expõe a farsa do esquerdismo e denuncia a parcialidade e a demagogia daqueles que, por muito menos, já tentaram paralisar o país: “RADICAIS CALADOS – mais de 100 000 militantes de movimentos sociais pedem a saída de FHC em 1997. Hoje, MST, CUT e UNE funcionam como braço auxiliar do governo e só promovem manifestações de apoio a Lula”.

Veja ainda me regalou com a radiografia imparcial do movimentículo paredista da USP, a resenha de Nelson Ascher sobre Hammerstein ou a Obstinação, de Hans Magnus Enzensberger, e o artigo “Empregos secretos”, de J. R. Guzzo. Só faltou, para que a leitura fosse absolutamente perfeita, um daqueles bons ensaios do Reinaldo Azevedo.

junho 24, 2009

Entre os livros

Descobri o mundo no Gabinete de Leitura Ruy Barbosa. Na primeira visita, à tarde, sem saber como me comportar naquele ambiente sóbrio, silencioso, passei poucos minutos no salão de leitura. Dias depois, por algum motivo – eu teria 13, 14 anos? –, visitei o local à noite: fervilhava. Através de uma portinhola sob a escadaria, servia-se chá e café; os grupos, nas mesas, folheavam jornais e discutiam política; numa saleta ao lado, jogava-se xadrez em meio à neblina dos cigarros. E o melhor: dona Odete, a bibliotecária, permitia que alguns consulentes ultrapassassem o balcão e visitassem o acervo circulante. Logo eu percorria, deslumbrado, milhares de livros.

Eram os tempos da ditadura militar, e as obras de Marx e Lênin, retiradas do acervo, permaneciam fechadas em um armário, na sala da diretoria. Os emedebistas e a esquerda silenciada murmuravam pelos cantos contra o diretor da casa, o advogado Celso Zuchetti, um anticomunista brilhante e mordaz, de quem acabei por me tornar amigo.

No andar superior ficava o salão de estudos e o acervo de pesquisa, comandados pelo velho Daniel, homem simples, boníssimo, que orientava os mais jovens nos estudos. Sentado em sua mesinha, ele batia a sineta quando os sussurros das mesas subiam de tom, fazendo com que voltássemos a ruminar os livros. Numa das extremidades da sala, o retrato a óleo de Rui Barbosa nos observava, altivo como a República Velha.

Passaram-se semanas até que Daniel me franqueasse os livros guardados nas estantes da diretoria: uma Brasiliana completa, dezenas de raridades, luxuosas encadernações de clássicos portugueses – e os comunistas, que ao mero toque queimavam a ponta dos dedos.

Ultrapassei os difíceis anos da adolescência naqueles salões. Protegido pelos livros, ouvindo os debates dos mais velhos, acordando para um novo autor a cada noite, descobri que a idéia de fraternidade nasceu em uma biblioteca. De volta para casa, ao cruzar a rua do Rosário rumo ao sobradinho na Onze de Junho, eu era a minha última versão, sempre melhorada.

junho 21, 2009

Apartados da tradição

Em dois artigos publicados na Folha de S. Paulo (30 de maio e 13 de junho), Antonio Cicero fala sobre a idolatria do contemporâneo: “O desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal”.

De fato, quais garantias nos oferecem as obras que ainda não passaram pelo filtro do tempo? Quem olha apenas o presente condena-se ao emburrecimento, pois, na maioria das vezes, nossos contemporâneos – exaltados pela mídia – nada significam, resumindo-se a ecos medíocres da tradição.

Mas como nasce o provincianismo? E por que ele se mostra tão arraigado? O mal principia nos bancos escolares. Uma historinha explicará a afirmação: há alguns meses, jantando na casa de um amigo, pude usufruir da companhia de uma professora de história recém-formada pela USP. A jovem, muito falante, lá pelas tantas – e não pensem que ela abusou do vinho – nos brindou com uma dessas pérolas inesquecíveis: “É impossível não perceber que a filosofia e a arte gregas estão maculadas pela herança desumana da escravidão”. E destrambelhou a repetir velhos, inúteis e carcomidos chavões de esquerda, ao fim dos quais, enredada na sua própria teia, ela já condenara à fogueira Platão, Aristóteles, Sófocles e Ésquilo, absolvendo, para minha surpresa, Aristófanes, pois, outra pérola, “a comédia sempre tem um alto poder contestador”.

Imagino essa garota repetindo suas idiotices, anos a fio, para centenas de crianças e jovens. E, pior, imagino o idiota que, refestelado em sua cátedra, ensina tais absurdos. George Steiner está certo: “A maioria daqueles a quem confiamos nossos filhos na escola secundária, daqueles em quem procuramos orientação e exemplo na universidade, são, em maior ou menor intensidade, gentis coveiros” (in Lições dos Mestres).

Em minhas breves experiências na universidade tínhamos de ler Roland Barthes e Charles Sanders Peirce de joelhos. E ai dos que desviassem os olhos daquelas páginas! O escolhido deste princípio de século é Deleuze. E dentro de alguns anos, quem será o novo bezerro de ouro? Enquanto isso, a Poética e a Retórica de Aristóteles emboloram no setor mais úmido da biblioteca.

Não se trata, contudo, de trocar um guia de cego por outro. Trata-se, sim, de estar aberto a tudo, sem preconceitos – e, em primeiro lugar, ler aqueles que nos antecederam, e cuja obra foi testada por gerações.

Não é o que acontece na universidade. O adjetivo que mais ouvi nos dois cursos de Letras que frequentei foi “superado”. “Fulano está superado”, decretava o arrogante catedrático. “Essa análise está superada”, grunhia a professora. “Como você pode perder tempo com esse autor superado?”, perguntou-me a prosélita do Departamento de Semiótica ao perceber que eu lia Albert Thibaudet. A universidade vive, assim, sob uma censura camuflada, procurando mais catequisar do que abrir consciências. E pobres dos que se afastam do redil! Um longo e doloroso calvário os aguarda, afinal – esse é outro dos chavões que cansei de ouvir –, “precisamos estar inseridos na modernidade”, ou seja, devemos ser cada vez mais provincianos.

A origem do problema, no entanto, é anterior aos cursos universitários. O que dizer de um aluno que termina o ensino médio sem jamais ter lido um poema de Catulo? Que jamais tenha ouvido falar de Heráclito? Pode parecer absurdo pensar nesses nomes quando a escola mal alfabetiza, mas a recente polêmica em torno dos livros adotados nos colégios paulistas mostra o descaso, a ignorância e o desvirtuamento dos responsáveis pela escolha das obras. Eles não são apenas provincianos; são filisteus.

Apartados da tradição, da nossa melhor herança cultural, os jovens podem viver sem grandes problemas – como de fato vivem –, mas terão um número reduzido de instrumentos para lidar com suas dúvidas e seus temores; e, menos sábios, celebrarão a mediocridade todos os dias, certos de viverem no melhor dos mundos.

junho 20, 2009

Shakespeare, Lampedusa e Vila-Matas

Enrique Vila-Matas resenha o Shakespeare de Giuseppe Tomasi di Lampedusa no Babelia deste sábado. O julgamento de Vila-Matas sobre o encontro desses dois escritores nos conduz ao caráter atemporal da leitura; e não poderia ser diferente:

Sus [de Lampedusa] eruditas y a veces alegres líneas sobre Shakespeare no cesan de comunicarnos que la lectura puede hacernos sentir dueños del tiempo y que ya sólo por eso la pasión de leer debería ser considerada como la más envidiable actividad que hay a este lado del paraíso.

junho 15, 2009

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”

Na última edição do Rascunho, escrevi sobre Os desbravadores – uma história mundial da exploração da Terra (Editora Cia. das Letras), do historiador Felipe Fernández-Armesto.

junho 12, 2009

O abismo de Baudelaire

Dentre os textos de Meu coração desnudado, de Charles Baudelaire, que mais me incomodam, estimulam e divertem está o de número LV:

No amor, como em todos os negócios humanos, o entendimento cordial resulta de um mal-entendido. Esse mal-entendido é o prazer. O homem exclama: – Ó meu anjo! A mulher arrulha: – Mamãe! mamãe! E os dois imbecis estão persuadidos de que pensam de acordo. – O abismo infranqueável, que gera a incomunicabilidade, permanece infranqueado.

Nessa brevíssima meditação, Baudelaire, como bom anti-romântico, coloca o amor entre os “negócios” humanos, despojando-o de qualquer idealização. Depois, diminui a própria possibilidade de os homens se entenderem, visto que, no fundo, todo entendimento “resulta de um mal-entendido”. A seguir, denigre a relação entre homem e mulher, definindo inclusive o prazer como um mal-entendido. Não satisfeito, segue-se o diálogo ridículo, por meio do qual ele espezinha o que ainda resta de esperança em seu leitor, para, no fim, concluir apresentando o veredicto terrível, a condenação do gênero humano à incomunicabilidade.

O julgamento é de um pessimismo atroz, realmente exagerado, chocante. Mas é inegável que, mesmo se não estivermos propensos a concordar com Baudelaire, ele nos faz refletir. Quando chegamos ao ponto final, o espinho já foi enfiado em nossa carne.

Erich Auerbach percebeu bem essa característica, chamando nossa atenção para o fato de que, na obra baudelairiana, “a relação entre amantes – ou, mais precisamente, entre os que estão ligados pela atração sexual – é representada como uma obsessão misturada ao ódio e ao desprezo, um vício que não perde nada de sua força atormentadora e degradante ao ser experimentado em plena (e indefesa) consciência”.

Aliás, o ensaio de Auerbach do qual retirei a citação acima – “As flores do mal e o sublime” (in Ensaios de literatura ocidental) é um exemplo de como alguns leitores reagem a Baudelaire, inebriados por ele “cantar em estilo elevado a ansiedade paralisante”, mas ao mesmo tempo desejando manter distância dessa literatura que, quase sempre, nega a vida. Auerbach consegue analisar a poesia de Baudelaire com isenção, mas percebemos o quanto ela o incomoda. Ele exalta o “uso simbólico do horror realista”, mas repudia a “incompreensão diletante da tradição cristã”, a “desesperança sombria”, as “tentativas absurdas e fúteis de se inebriar e de escapar”.

Creio que a maioria dos leitores guarda o mesmo sentimento em relação a Baudelaire. Ele talvez empolgue os jovens, principalmente os cheios de amargura, os depressivos, os que se consideram incompreendidos. Mas o entusiasmo exagerado não é a melhor das reações possíveis à poesia e à literatura em geral. A empolgação, na verdade, esconde quase sempre o entendimento imperfeito, superficial – e traz, implícita, a necessidade da releitura. O leitor maduro, ainda que, como Auerbach, refute o “emaranhado sem esperança” de Baudelaire, consegue ler sua obra sem preconceito, aceitando que ele deseje inocular em nossas veias o seu veneno, mas preservando a dose de crítica que nos permite fruir a perfeição estética sem, contudo, sermos capturados pelo niilismo.

Minha relação com Baudelaire é exatamente assim. Depois que o leio, um exercício sempre prazeroso, sinto-me novamente expulso do Paraíso, e olho a vida de maneira ainda menos inocente – mas nem por isso deixo de acreditar que alguma forma de diálogo é possível, que o abismo não é de todo infranqueável.

[Falo mais sobre Erich Auerbach e seu Ensaios de literatura ocidental em minha resenha – “O humanista dividido” –, publicada no jornal Rascunho.]

junho 11, 2009

Scheherazade

O rei Šahriyar era um tolo. Que homem, em sã consciência, se deixaria engambelar por uma mulherzinha fútil, faladeira e lamurienta como Šahrazad (ou, se preferirem, Scheherazade)? Duas ou três noites ouvindo historinhas curiosas e intermináveis talvez pudesse ser uma alternativa interessante para alguém que descobriu ser traído pela esposa e sofre, por esse motivo, daquela melancolia típica do corno (mal, aliás, que pode ser perfeita e rapidamente curado, pois ninguém é insubstituível). Mas noites a fio? Santo Deus! Só um idiota – ou um surdo – para suportar tamanha embromação. Šahriyar, infelizmente, não pôde ler “A mulher selvagem e a casquilha”, de Baudelaire. Nesse pequeno poema em prosa, ele aprenderia que, frente a determinadas situações-limite, resta ao homem de bom senso poucas escolhas: enjaular a mulher ou apenas lançá-la janela afora. Por essas e outras razões, sempre que leio o Livro das mil e uma noites tenho a absoluta certeza de que ele foi escrito por uma mulher. Quem mais acreditaria que seu poder de sedução é invencível – ou que alguém pode se dispor a ouvir histórias interminavelmente?

junho 09, 2009

Silêncio

No fundo, tenho dedicado minha vida à busca do silêncio. Recordo-me de sempre desejá-lo. Talvez por isso, na juventude, tenha lido insistentemente são João da Cruz e santa Teresa D’Ávila, esses místicos do deserto carmelita, amantes do silêncio absoluto, no centro do qual arderia a chama da transcendência. Talvez por isso, quando penso no silêncio, a primeira imagem que surge é a da capela do Carmelo em minha cidade natal, onde passei horas, às vezes tardes inteiras, sob a penumbra dos vitrais, orando – ou apenas em silêncio. A outra recordação é a casa de minha avó paterna – ali também o silêncio fluía, era possível vê-lo no olhar de minha avó, sempre à espera, ou na fumaça de seus intermináveis cigarros, enquanto os cachorros dormiam e eu lia.

Morar em São Paulo, contudo, transforma a busca do silêncio em um exercício às vezes torturante. Em certos dias, para se ter paz, é preciso ouvir os quartetos de cordas de Beethoven no último volume, a fim de – literalmente – derrotar o ruído.

Não enlouquecerei como o personagem de Antonio Di Benedetto em O silencieiro, mas parece-me evidente que o ruído se tornou uma das principais características da nossa cultura – e que a maioria das pessoas não suporta o silêncio. Mais do que um produto de consumo, como diz George Steiner, o ruído é hoje uma imposição, uma categoria inseparável do viver – uma arbitrariedade.

junho 06, 2009

No centenário do nascimento de Isaiah Berlin


Michael Ignatieff encerra sua biografia de Isaiah Berlin (6 de junho de 1909 - 5 de novembro de 1997) com uma frase que sintetiza não apenas a vida desse notável filósofo, mas também o que ele representa para toda uma geração de pensadores: “Num século escuro, Berlin mostrou o que deve ser uma vida da mente: cética, irônica, desapaixonada e livre”. Erguer-se acima das mazelas humanas, agitando, a cada pensamento, a cada ensaio, a cada aula, essas quatro bandeiras – e fazê-lo em uma época marcada por duas guerras mundiais e por ditaduras que, em nome de conduzir o mundo ao Paraíso, assassinaram milhões de pessoas – representa uma trabalho invejável.

Não me recordo qual foi o primeiro texto de Berlin que li, mas fui imediatamente fisgado por sua retórica “precipitada”, por seu estilo deliciosamente professoral, com uma lógica que não é fria, mas aberta ao gracejo, à ironia, e acima de tudo incansável na argumentação, com exemplos que vão se interligando em longos e sedutores parágrafos.

Sempre que leio Berlin imagino o que seria ouvi-lo durante uma aula, como seria dialogar com ele, vendo a linha de seu raciocínio nascer em meio aos gestos, ao movimento dos olhos, à agitação do corpo que se empolga – ou seja, viver o que Ignatieff descreve: “ser arrastado ao salão de sua mente”.

De qualquer forma, estou fadado a experimentar apenas parcela dessa sedução, quando leio seus ensaios. É um consolo, sem dúvida.

Sempre que releio “A busca do ideal” (in Estudos sobre a humanidade), por exemplo, deixo, prazerosamente, que ele me conduza de uma primeira visão geral sobre a história humana no século XX para o seu próprio percurso intelectual, convencido, como ele, de que esse é um processo de constante negação da barbárie, pois “somente os bárbaros”, diz Berlin, “não são curiosos sobre o lugar de onde vêm, como chegaram aonde estão, para onde parecem estar indo, se desejam ir para esse lugar, em caso positivo, por quê, em caso negativo, por que não”.

Passo a passo ele revisita todas as ilusões do pensamento, do ideal platônico ao marxismo, todos esses castelos construídos no ar, que insistem em nos dizer que um dia a razão triunfará definitivamente, dando início a uma era de cooperação e harmonia universal, a “história verdadeira”.

Depois, ele nos mostra como acordou – o lento despertar rumo ao “senso de realidade”: Maquiavel, Vico, Herder –, até atingir sua visão pluralista (e jamais relativista; como, aliás, ele insiste em sublinhar). Um pluralismo despojado de qualquer utopia, firmado na realidade, segundo o qual “um mundo sem conflitos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de nosso conhecimento”.

Trata-se de uma visão dura, sem dúvida. Mas absolutamente lúcida. Berlin não se permite “descansar na cama confortável dos dogmas” ou ser “vítima de uma miopia auto-induzida”. Não. Jamais haverá uma solução final para o homem, pois uma sociedade sem problemas – ou um planeta sem problemas, sem divisões – é uma sociedade “em que a vida interior do homem, a imaginação moral, espiritual e estética, já não diz nada”.

E antes que nos perguntemos o que o homem pode fazer, então, diante da realidade injusta, insatisfatória, constantemente fendida, ele nos responde: “O melhor que podemos fazer é manter um equilíbrio precário que impeça a ocorrência de situações desesperadas, de escolhas intoleráveis”.

Esse é Berlin: o olhar aberto ao real, sem jamais aceitar qualquer véu que edulcore a nossa fragilidade. Nosso “equilíbrio inquieto” está “sob constante ameaça e em constante necessidade de reparo”, ele afirma. E não há como escapar: “A situação concreta é quase tudo” e “o risco moral às vezes não pode ser evitado”. Só essa verdade nos livra da embriaguez ideológica. E só ela nos move à negociação perene com os outros homens, à urgência de estarmos continuamente reinventando o diálogo, a “intercomunicação entre as culturas”.

Isso não quer dizer, no entanto, que devemos abdicar de certos bens incontestáveis, como a liberdade, a justiça, a procura de felicidade, a probidade, o amor. Berlin é claro: “Devemos buscar esses direitos e proteger as pessoas contra aqueles que os ignoram ou recusam em admiti-los; e quando o diálogo se torna impossível, podemos, então, nos sentir impelidos a guerrear com eles. Mas é necessário sempre tentar convencê-los”.

Àqueles que estão em busca de absolutos, o pensamento de Berlin parecerá decepcionante. Mas aqueles abertos à construção do “equilíbrio difícil”, esses sabem que viver significa nem sempre conseguir evitar escolhas penosas e soluções imperfeitas; que a razão não é um instrumento plenamente eficaz; e que nossas escolhas não são imbatíveis ou incontestáveis. Na verdade, a história já demonstrou que “a busca da perfeição é a receita para o derramamento de sangue”.

O pensamento de Berlin, portanto, não propõe uma receita infalível para se chegar à verdade. Ao contrário, é um incansável convite ao inseguro exercício da liberdade.

junho 05, 2009

Os melhores dias

As manhãs frias lembram-me a infância. São recordações intensas, vívidas. Assim que desperto e começo a me levantar, vejo-me criança, colocando o uniforme no quarto ainda escuro e sentindo o impacto dos tecidos gelados contra a pele. Esse desconforto, no entanto, dura pouco. Eu me lavava com prazer na água que parecia quebrar entre os dedos, e a cada golpe do líquido no rosto, uma sensação de revigoramento me invadia, como se o choque de temperaturas expulsasse para sempre a morbidez noturna. Minha mãe esperava-me na cozinha, o café sobre a mesa. E enquanto ela tremia, eu já me tornara elétrico, alerta, falante. Poucos minutos depois, caminhava na 11 de Junho, observando as calçadas cobertas de orvalho, o verde das árvores impregnado de um brilho mais puro, e percebendo, a cada passo, a suave cumplicidade do sol. O verão desaparecera. Toda a natureza refreara seus ímpetos e eu não tinha de vencer o mormaço que embotava meu cérebro. Era uma alegria cruzar o jardim público vendo a massa encapotada de crianças e jovens, aquele mar azul-marinho de cabeças inclinadas sob o frio, enquanto eu me sentia renascer, pronto a qualquer aventura. Tudo se revestia de uma beleza nova, incluindo as meninas, obrigadas a usar a saia do uniforme, trêmulas e adoravelmente frágeis apesar das meias de lã e dos capotes. Olho pela janela as pessoas lá embaixo, centenas de agasalhos multicoloridos movendo-se na direção do metrô, e meu impulso é estar entre elas, deixando que o frio afague meu rosto, seguindo, alegre, movido pela urgência da fuga, rumo aos melhores dias da infância.