dezembro 30, 2010

Gerard Manley Hopkins

Deixo aqui, aos amigos e leitores, este poema de G. M. Hopkins como presente inspirador para o ano que se inicia. Feliz 2011!

The Lantern out of Doors

Sometimes a lantern moves along the night,
That interests our eyes. And who goes there?
I think; where from and bound, I wonder, where,
With, all down darkness wide, his wading light?

Men go by me whom either beauty bright 
In mould or mind or what not else makes rare:
They rain against our much-thick and marsh air
Rich beams, till death or distance buys them quite.

Death or distance soon consumes them: wind
What most I may eye after, be in at the end 
I cannot, and out of sight is out of mind.

Christ minds: Christ’s interest, what to avow or amend
There, éyes them, heart wánts, care haúnts, foot fóllows kínd,
Their ránsom, théir rescue, ánd first, fást, last friénd.

(1877)

Lanterna externa

Uma lanterna move-se na noite escura,
Que às vezes nos apraz olhar. Quem anda
Ali? – medito. De onde, para onde o manda
Dentro da escuridão essa luz insegura?

Homens passam por mim, cuja beleza pura
Em molde ou mente ou mais um dom maior demanda.
Chovem em nosso ar pesado a sua branda
Luz, até que distância ou morte os desfigura.

Morte ou distância vêm. Por mais que para vê-los
Volteie a vista, é em vão: eu perco o que persigo.
Longe do meu olhar, longe dos meus desvelos.

Cristo vela. E o olhar de Cristo, em paz ou em perigo,
Os vê, coração quer, amor provê, pé ante pé, com suaves zelos:
Resgate e redenção, primeiro, íntimo e último amigo.

(Tradução de Augusto de Campos)

dezembro 20, 2010

A gruta de Belém

“O coração de Belém é uma caverna; o santuário recoberto que é o cenário tradicional da Natividade. Nove em dez destas tradições são verdadeiras, e totalmente ratificadas pela verdade sobre o ambiente rural; pois é para estes estábulos subterrâneos que as pessoas têm levado seus rebanhos, e eles são, de longe, os locais de refúgio mais plausíveis para tantos grupos sem lar. É curioso considerar quantas variadas e inumeráveis versões da história de Belém têm sido transformadas em pinturas. Homem algum que compreenda a Cristandade irá se queixar que são todas elas diferentes entre si e todas diferentes da verdade, ou, ainda, dos fatos. O ponto central da história é que se passou em um espaço humano particular; uma ensolarada colunata na Itália ou uma casa de campo coberta de neve em Sussex. É ainda mais curioso que alguns artistas modernos tenham se aproveitado apenas da verdade topográfica; e que todavia não tenham compreendido muito dessa verdade sobre o escuro e sagrado local subterrâneo. Parece estranho que não tenham enfatizado o único caso em que o realismo verdadeiramente se aproxima da realidade. Há alguma coisa que supera as expressões da imaginação na ideia de fugitivos sagrados sendo descidos para baixo do solo; como se a terra os tivesse engolfado; a glória de Deus como ouro enterrado no chão. Talvez a imagem seja profunda demais para a arte, mesmo se ocupando em uma outra dimensão. Pois deve ser difícil para qualquer arte transmitir simultaneamente o segredo divino da caverna e a procissão dos soberanos misteriosos, a pisar a planície rochosa e a abalar o topo das cavernas.”

G. K. Chesterton (“Belém e as grandes cidades”, New Witness, 8 de dezembro de 1922, in O tempero da vida e outros ensaios, Editora Graphia)

dezembro 11, 2010

Defender a democracia liberal contra os fanáticos

Abaixo, coloco um dos melhores trechos do discurso de Vargas Llosa em Estocolmo. Poucos, escritores ou não, têm a coragem de, nos dias de hoje, proclamar em alta voz este repto contra o terrorismo islamita:

Como todas las épocas han tenido sus espantos, la nuestra es la de los fanáticos, la de los terroristas suicidas, antigua especie convencida de que matando se gana el paraíso, que la sangre de los inocentes lava las afrentas colectivas, corrige las injusticias e impone la verdad sobre las falsas creencias. Innumerables víctimas son inmoladas cada día en diversos lugares del mundo por quienes se sienten poseedores de verdades absolutas. Creíamos que, con el desplome de los imperios totalitarios, la convivencia, la paz, el pluralismo, los derechos humanos, se impondrían y el mundo dejaría atrás los holocaustos, genocidios, invasiones y guerras de exterminio. Nada de eso ha ocurrido. Nuevas formas de barbarie proliferan atizadas por el fanatismo y, con la multiplicación de armas de destrucción masiva, no se puede excluir que cualquier grupúsculo de enloquecidos redentores provoque un día un cataclismo nuclear. Hay que salirles al paso, enfrentarlos y derrotarlos. No son muchos, aunque el estruendo de sus crímenes retumbe por todo el planeta y nos abrumen de horror las pesadillas que provocan. No debemos dejarnos intimidar por quienes quisieran arrebatarnos la libertad que hemos ido conquistando en la larga hazaña de la civilización. Defendamos la democracia liberal, que, con todas sus limitaciones, sigue significando el pluralismo político, la convivencia, la tolerancia, los derechos humanos, el respeto a la crítica, la legalidad, las elecciones libres, la alternancia en el poder, todo aquello que nos ha ido sacando de la vida feral y acercándonos –aunque nunca llegaremos a alcanzarla– a la hermosa y perfecta vida que finge la literatura, aquella que sólo inventándola, escribiéndola y leyéndola podemos merecer. Enfrentándonos a los fanáticos homicidas defendemos nuestro derecho a soñar y a hacer nuestros sueños realidad.

Aqui, a íntegra do discurso de Vargas Llosa.

novembro 26, 2010

O riso da dobrez – e outro riso

Presente, passado remoto, futuro e passado próximo se alternam nos dois primeiros parágrafos do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis, para introduzir o leitor na história que só pode ser contada, sem dissimulações, agora (conforme o presente a partir do qual o narrador fala) que os três personagens estão mortos. História de algum modo embaraçosa, portanto, e também complexa, pois exige que o narrador recue “à origem da situação”. Assim Machado fisga o leitor: jogando com o tempo, sugerindo a gravidade dos fatos que levaram à cena inicial do conto – “[...] os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade” – e escondendo de nós o que sente o terceiro personagem, Fortunato, que, “na cadeira de balanço, olhava para o teto”.

A partir do terceiro parágrafo, será Fortunato o centro da narrativa. Mas quem é, realmente, o homem que Garcia, então estudante de medicina, vê, en passant, saindo da Santa Casa? Um médico? Um samaritano? Mais tarde saberá que se trata de um “capitalista, solteiro” – e conhecerá, lentamente, muito mais.

Quando reencontra o homem que, por algum motivo, o impressionou, está no teatro, teatrinho de periferia, à qual “só os mais intrépidos ousavam estender os passos”. O “dramalhão cosido a facadas” hipnotiza Fortunato – e sua exagerada atenção desperta a curiosidade de Garcia. Este segue o primeiro, vendo-o caminhar “cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia”.

Antes, porém, o narrador nos oferece um detalhe curioso: Fortunato abandona o teatro assim que o drama termina, indiferente à peça seguinte, uma farsa. As sutilezas de Machado, bem sabemos, nunca são ornamentos inúteis, e não é diferente neste caso, em que o fato de o personagem desprezar uma peça cômica, mas redobrar sua atenção nos “lances dolorosos” do drama, é a primeira, tênue característica de Fortunato, complementada, logo a seguir, pelos cães que ele deixa ganindo enquanto caminha.

No próximo encontro, surpreendente, Garcia descobrirá que esse homem pode não apenas salvar um estranho esfaqueado, mas também se desvelar à cabeceira do ferido, com “rara dedicação”. Há algo perturbador, contudo, pois a fácies de Fortunato não corresponde aos seus gestos: “Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria”. Para completar o quadro, ficamos sabendo que a vítima da agressão encontra apenas desdém quando, recuperada, vai agradecer ao seu salvador. E o leitor se pergunta: Por que, então, ele foi bom? Por que despreza com arrogância o agradecimento?

Anos depois, quando Garcia começa a se tornar íntimo desse enigmático personagem e passa a frequentar a casa que ele divide com a esposa, Maria Luísa, a lembrança da dedicação de Fortunato retorna, e o amigo o descreve com elogios à mulher atenta. Esta, que em relação ao marido tem “uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor”, ouve a história, primeiro “espantada”, depois “risonha e agradecida”. A reação do marido, contudo, é diversa. Fortunato complementa o relato de Garcia com a narração da visita do esfaqueado; e o faz de maneira incomum, rindo muito. E o narrador observa: “Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco”. Parece haver, realmente, uma terrível contradição nesse homem: na aparência caridoso, é capaz de zombar de quem ele próprio ajudou.

Esse é o centro da trama psicológica criada por Machado, para quem os homens ocultam, sempre, uma segunda intenção em cada gesto. A bondade de Fortunato, o leitor descobrirá, guarda um propósito detestável – o bem que ele pratica possui um só objetivo: satisfazer a sua perversão. À medida que o conto se desenrola e a personalidade desse curioso benfeitor ganha novos contornos, o leitor acordará para uma espécie sui generis de mal, sem jamais poder acusar Fortunato de ser mau. Machado nos oferece a oportunidade de refletir sobre as possíveis gradações da busca do prazer, “um vasto prazer, quieto e profundo”, no qual não há “nem raiva, nem ódio”, mas que, forjado no que parece ao leitor um antagonismo atroz, transforma o personagem numa “redução de Calígula”. Portanto, como se trata de Machado, talvez Fortunato seja, de alguma forma, mau...

Em uma de suas crônicas, “Antonieta Rudge”, Manuel Bandeira diz que o autor de Dom Casmurro tem “o gosto doentio de espiar o sofrimento alheio”. E completa: “A psicologia dura, derrotista, insultante de quase toda a obra. Sempre o móvel egoísta, e ainda que limpo, inconfessável. [...] Em suma eu achava, e ainda hoje acho, que Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um monstro”. Ora, quem sonda as filigranas dos homens está fadado a descobrir monstruosidades e santidades, mas isso não faz dele, necessariamente, um monstro ou um santo. O “gosto doentio” de Machado resume-se à investigação das zonas escuras do ser humano, nada mais. E se ele encontra máculas, também consegue ver, na mesma pessoa – neste caso, em Fortunato –, o devotamento amoroso.

Na verdade, nada é simples ou plano no Bruxo do Cosme Velho. Ele afastou de si as generalizações – e não se satisfez apenas com a busca do que Nabokov chamava de “o pormenor incongruente”, mas a forma por meio da qual expressou suas descobertas também fugiu a todos os estereótipos, pois é possível ouvir ao fundo, enquanto o leitor se revolta ou escandaliza, o seu riso algo diabólico, sempre instigante, que nunca julga, jamais condena.

novembro 18, 2010

O romance, uma espécie de abrigo temporário

“Sem uma arte que não se esquive diante de qualquer horror pessoal ou coletivo, ele [Proust] insiste, não podemos conhecer a nós mesmos nem aos outros. Apenas a arte penetra no que o orgulho, a paixão, a inteligência e o hábito edificam por toda parte – as realidades aparentes deste mundo. Existe uma outra realidade, e genuína, a qual perdemos de vista. Esta outra realidade está sempre nos enviando sinais, que, sem a arte, não podemos receber. Proust denomina estes sinais de nossas ‘impressões verdadeiras’. Sem a arte, as impressões verdadeiras, nossas intuições persistentes, ficarão escondidas para nós, e não nos restará mais nada senão uma ‘terminologia para fins práticos, a que falsamente chamamos vida’.

[...]

Ninguém que tenha gasto anos escrevendo romances pode ser indiferente a isso. O romance não pode ser comparado ao épico, nem aos monumentos do drama poético. Mas é o melhor que podemos fazer agora. É uma espécie de abrigo temporário, uma choupana onde o espírito vem buscar guarida. Um romance se equilibra entre algumas poucas impressões autênticas e a multidão de impressões falsas que mascaram aquilo a que chamamos vida. O romance nos diz que para cada ser humano há uma variedade de existências, que a existência isolada é ela mesma em parte ilusão, que essas várias existências significam alguma coisa, tendem a alguma coisa, preenchem alguma coisa; o romance nos promete sentido, harmonia, e até justiça. O que Conrad disse era verdade: a arte tenta descobrir no universo, na matéria bem como nos fatos da vida, aquilo que é fundamental, duradouro, essencial.”

Saul Bellow, Discurso do Prêmio Nobel

novembro 12, 2010

O presente e o futuro

"Nunca estamos em nós; estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-nos o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais." (Montaigne)

"As expectativas sempre fazem com que nós, os seres humanos, negligenciemos o presente." (Freud)

novembro 05, 2010

"O modelito da mordaça"

Enquanto os esquerdistas moralizadores e os ditadorzinhos dissimulados pretendem censurar Monteiro Lobato, a sempre lúcida Marisa Lajolo, decana dos estudos lobatianos no Brasil, acaba de escrever o preciso, brilhante artigo que coloco a seguir. Vejam o que ela diz: "o modelito da mordaça" que querem nos impor agora "talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública [...], pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê!".

Leiam com atenção:

Quem paga a música escolhe a dança?

Marisa Lajolo

“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso.

Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.

Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida: felinos ferozes invadem o sítio e – de novo – é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças (particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça.

Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.

Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares. O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.
Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu (D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar...!

É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação – manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que leem.

Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.

Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolhe a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos. Trata-se de uma ideia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade contra a nova mulher do papai, mas – ao contrário ¬– pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva...

Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação – pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta. E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores.

No caso deste veto a “Caçadas de Pedrinho”, a conselheira relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância “de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas” ; (...) aponta “menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado” e exige “da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura”.

Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE, que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.

O que a nota exigida deve explicar? O que significa “esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura”? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma auto-crítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?

As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro. Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir – será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê!

Marisa Lajolo é professora titular (aposentada) da UNICAMP; professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pequisadora Sênior do CNPq.; Ex-Secretária de Educação de Atibaia (SP); Organizadora (com João Luís Ceccantini) do livro "Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil)", obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2009 como melhor livro de Não Ficção.
  

novembro 02, 2010

Qualquer discurso criminoso de "democratizar" a mídia através de órgãos tutelares do governo deve ser rechaçado se não quisermos virar uma República da banana



Guerra

Luiz Felipe Pondé

"DEMOCRACIA" é uma palavra quase tão gasta quanto a palavra "energia". Quer ver?

Pode-se falar em democracia na escola (papo furado para não dar aula ou seduzir os alunos que não gostam de ter aula), democracia dos afetos (hoje transo seres humanos, amanhã, labradores, nada de "especismo", porque cachorro é gente), democracia corintiana (dessa nem falo porque sou um palmeirense ressentido), democracia na família (mesmo que os pais paguem as contas, eles devem obedecer à base popular, isto é, os filhos), enfim, qualquer um pode inventar a sua própria democracia.

Cuba se acha democrática, quando na realidade é uma ilha sitiada por um sistema da idade da pedra. A Alemanha comunista, logo ditadura da pior espécie, se chamava "República Democrática Alemã".

Chávez e Evo Morales (anões bolivarianos) também acham que é democrático ficar mudando a Constituição para ficarem no poder 200 anos. Não é o voto popular que garante sozinho a democracia (só pensa isso quem é analfabeto ou mentiroso). Esta é a nova esquerda que, como sempre quis, quer dominar a América Latina.

Nenhum regime de esquerda é democracia porque os esquerdinhas são essencialmente autoritários como os talebans.

Basta ver o que intelectuais de esquerda fazem no seu mundinho da universidade: destroem carreiras, inviabilizam pesquisas, aniquilam alunos promissores, constrangem moralmente a dissidência, só para perpetuar o domínio institucional. Eles são maioria absoluta e destroem toda liberdade intelectual em nome do "bem coletivo".

Estão preparando no Brasil um dos maiores abusos em nome (adivinhe?) da democracia: o controle da mídia. E esta é uma forma de controle da cultura.
Alguns Estados se preparam para criar órgãos de controle da mídia. Claro que os que assim agem afirmam não ser intenção deles controlar a mídia, mas, como eu não acredito em Papai Noel, sei que não dizem a verdade.
O que é a democracia? Antes de tudo é uma palavra do grego arcaico. Depois, ganhou cidadania na filosofia política em geral para se referir a um sistema de governo baseado na "soberania popular", e aí, meu amigo, a coisa vai para o brejo.

Por exemplo, eu posso ser um tonto, analfabeto de pai e mãe, e meu voto vale tanto quanto o seu, pessoa culta, esforçada para compreender o mundo e fazê-lo menos estúpido do que já é. Eis o brejo...

Logo, voto popular não basta para garantir coisa nenhuma. Todo mundo sabe que, como mostra o maravilhoso filme "Tropa de Elite 2" (que merece um texto à parte), voto é mercadoria barata, qualquer bandido pode migrar do tráfico de drogas para o tráfico de influência (corrupção) e comercializar votos.

E, na democracia, voto vale ouro para quem o recebe e nada para quem o dá. A sobrevida da democracia depende de mecanismos finos de pesos e contrapesos que sustentam a liberdade e que vão muito além do simples voto de qualquer um. E é aí que a democracia brasileira está a um passo do abismo.

Qualquer discurso criminoso de "democratizar" a mídia através de órgãos tutelares do governo (seja ele qual for, mesmo um em que eu votei) deve ser rechaçado se não quisermos virar uma República da banana.
A mídia (TV, cinema, rádio, jornais, publicidade) deve ser absolutamente livre. Deve ter seus próprios mecanismos de autorregulação e jamais ser objeto de "fiscalização externa" (que será sempre ideológica, mesmo que contem historinhas de fadas para dizer que não é).

As melhores intenções neste caso serão sempre criminosas a serviço do "mal". Mídia boa é mídia incômoda. Para além de qualquer crítica que se possa fazer à mídia, ela é a principal arma contra sistemas totalitários que amam a burrice pública da unanimidade.

A pior forma de controle da mídia é aquela que se diz em nome do "combate democrático aos preconceitos" ou da "democratização social" porque se faz invisível usando a palavra mágica "democracia".

Querem uma mídia democrática? Deixem-nos em paz e aguentem o tranco. Esses órgãos de controle da mídia devem ser encarados como uma declaração de guerra. Você tem medo da liberdade?

(Folha de S. Paulo, 1º de novembro de 2010)

novembro 01, 2010

Em defesa de Monteiro Lobato

Convido todos os que, como eu, consideram um despautério a censura de Monteiro Lobato pelo Conselho Nacional de Educação a assinar o abaixo-assinado "Em defesa de Monteiro Lobato".

outubro 29, 2010

Querem censurar Lobato!

Ah, os esquerdistas moralizadores! Ah, esses doutrinadores de plantão, supostos donos da verdade, censores dissimulados, pregadores de um púlpito no qual impera uma única lei, uma só ordem: silenciar o diferente, igualar todos pelo nível mais baixo, mediocrizar as consciências. Ah, esses tribunais estado-novistas! Ah, esses ditadorzinhos silenciosos e matreiros referendados pelo mais vil de todos os governos! Deixem Lobato em paz! Deixem o audacioso, moderno, corrosivo e genial Lobato em paz!

Conselho quer vetar livro de Monteiro Lobato em escolas

Parecer sugere que obra não seja distribuída sob a alegação de que é racista


Racismo em "Caçadas de Pedrinho" estaria nas referências à Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco

ANGELA PINHO
JOHANNA NUBLAT
DE BRASÍLIA

Monteiro Lobato (1882-1948), um dos maiores autores de literatura infantil, está na mira do CNE (Conselho Nacional de Educação).
Um parecer do colegiado publicado no "Diário Oficial da União" sugere que o livro "Caçadas de Pedrinho" não seja distribuído a escolas públicas, ou que isso seja feito com um alerta, sob a alegação de que é racista.
Para entrar em vigor, o parecer precisa ser homologado pelo ministro da Educação, Fernando Haddad. O texto será analisado pelo ministro e pela Secretaria de Educação Básica.
O livro já foi distribuído pelo próprio MEC a colégios de ensino fundamental pelo PNBE (Programa Nacional de Biblioteca na Escola).
Em nota técnica citada pelo CNE, a Secretaria de Alfabetização e Diversidade do MEC diz que a obra só deve ser usada "quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil".
Publicado em 1933, "Caçadas de Pedrinho" relata uma aventura da turma do Sítio do Picapau Amarelo na procura de uma onça-pintada.
Conforme o parecer do CNE, o racismo estaria na abordagem da personagem Tia Nastácia e de animais como o urubu e o macaco.
"Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano", diz a conselheira que redigiu o documento, Nilma Lino Gomes, professora da UFMG.
Entre os trechos que justificariam a conclusão, o texto cita alguns em que Tia Nastácia é chamada de "negra". Outra diz: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão".
Em relação aos animais, um exemplo mencionado é: "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens".
Por isso, Nilma sugere ao governo duas opções: 1) não selecionar para o PNBE obras que descumpram o preceito de "ausência de preconceitos e estereótipos"; 2) caso a obra seja adotada, tenha nota "sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura".
À Folha Nilma disse que a obra pode afetar a educação das crianças. "Se temos outras que podemos indicar, por que não indicá-las?"
Seu parecer, aprovado por unanimidade pela Câmara de Educação Básica do CNE, foi feito a partir de denúncia da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, ligada à Presidência, que a recebeu de Antonio Gomes da Costa Neto, mestrando da UnB.

(Folha de S. Paulo, 29 de outubro de 2010)

outubro 28, 2010

Importância da crítica literária

"A crítica literária de verdade é importante, pois é um dos mais importantes componentes na determinação das obras canônicas. O cânone poético é produzido por uma sociedade aberta, composta por poetas, críticos, professores, estudantes e leitores em geral. Ele nunca é absolutamente definitivo. De vez em quando, o direito de determinadas obras a pertencer ao cânone é questionado; de vez em quando, outras obras (novas ou antigas) entram no cânone. Mas o fato é que, à medida que o tempo passa, determinados autores que foram apreciados por várias gerações constituem uma espécie de núcleo canônico, e este dificilmente é modificado. Hoje me parece praticamente inconcebível que autores como Homero, Horácio, Dante, Shakespeare, Baudelaire, Rilke ou Drummond deixem de ser canônicos."

Antonio Cicero, aqui.

outubro 25, 2010

outubro 24, 2010

Literatura, ópera e muito mais

Aqui, a primeira parte de meu bate-papo com a tradutora e escritora Ivone C. Benedetti. Na próxima semana, a continuação.
 

outubro 17, 2010

Da gota d’água ao poema

O poeta e diplomata mexicano José Gorostiza não é conhecido no Brasil, a não ser por alguns estudiosos e pelos raros amantes da poesia latino-americana que conseguem ir além de certos nomes óbvios, como Borges ou Octavio Paz. A Edusp publicou, há alguns anos, uma edição bilíngue da sua escassa obra poética, com tradução de Horácio Costa, livro que recomendo não só pelo magnífico “Muerte sin fin”, mas também pelos brevíssimos poemas – fascinantes exemplos de síntese – que compõem a série “Dibujos sobre un puerto”.

Gorostiza também publicou alguns breves ensaios. Eles podem ser lidos na completíssima edição crítica da Colección Archivos, Poesía y Poética. Dentre seus textos em prosa, há o pequeno “Esquema para desarrollar un poema”. Partindo de um simples ruído, Gorostiza narra a viagem de sua mente em busca de signos, analogias. Ele não oferece, nos dois primeiros parágrafos, a receita sobre como fazer um poema, mas descreve o processo por meio do qual a primeira imagem – a da gota de água que cai, pausada, em seus ouvidos – se desdobra em outras, numa amplificação que sobrepõe camadas de significados, formando o crescendo cuja essência ele define como um “sortilégio de sensibilidade”.

No terceiro e último parágrafo, Gorostiza apresenta sua síntese. Não, ele não pretende ensinar a escrever um poema. Na verdade, esse trecho final é apenas o resumo do itinerário que o poeta propõe a si mesmo em seu processo de criação. Não se trata, portanto, de um exercício de escrita, ainda que possamos usá-lo como tal, mas principalmente de seguir, linha a linha, o poetar de Gorostiza. É com esse texto, cuja lógica poderia servir também a textos em prosa, que deixo vocês, caros leitores:

Esquema para desarrollar un poema

Insomnio tercero

“Cry! Sleep no more, Macbeth doth murder sleep.”
Shakespeare

Una gota de agua cae ahora, pausada, en mis oídos. Una, dos, tres, cuatro... La pienso. Mis ojos salen a oscuras de la alcoba, pasan por el corredor seguros de que todo está en su sitio: la mesa, el sillón de cuero, la caja de latón en que guarda mi madre los carretes de hilo, el reloj de pared, todo inundado en una media sombra que brota del tragaluz como del ojo de un gato, para que mi padre mire mejor la escena desde un retrato al carbón en que lo aprisionó, todavía en la juventud, el fotógrafo. Nada ha podido cambiar en una hora, nada. Lo sé. La imagen puede bajar la escalera sin tropezar con una silla, girar bruscamente a la izquierda, salvando un librero, y llegar al rincón, precisamente bajo la escalera. Aquí se construye. El filtró está ahí. Es un filtro grande que se compone de una piedra caliza en forma de pirámide con el vértice hacia abajo, sostenida por un armario de madera que tiene casi al nivel del piso una repisa en donde la tinaja sedienta recibe una a una las gotas de agua que deja caer la piedra. La tinaja de vientre profuso, de labio fresco que da más que el sereno frescura al agua. La serena. Este método de filtrar es el más natural. Está copiado de la naturaleza, y proporciona a domicilio la rara facilidad de beber un agua como de río subterráneo que ha atravesado un suelo estéril sediento, que incapaz de volver el agua hacia arriba en vegetación, la atesora en secreto y la da en corriente de incomparable limonada. Ahí se construyó pues la imagen. La gota de agua era aquella que se había agigantado en la noche, que había momentáneamente opacado los demás ruidos o sumándolos a ella, y se mantenía ahí a una distancia de sí misma que era imposible que ella y su ruido permanecieran ligados. Había un como desdoblamiento de la gota de agua y su ruido, una extralimitación del ruido que se presentaba demasiado lejos, que era ya un ruido solo, divorciado de su objeto, y capaz, ya no como un objeto de producir un ruido, sino como un ruido capaz de producir un objeto.

Pero hubo un momento en que el ruido de la gota de agua fue creciendo. No era un ruido, una pausa, un ruido igual. No. Por no sé qué sortilegio de sensibilidad, cada nuevo golpe de ruido era mayor como si sumara al anterior, y su imagen correspondiente la gota de agua, se sumaba también a su imagen, y en unos pocos minutos me encontré en el mar, en alta mar, predominando sobre la vibración toda del barco, el ruido igual de la ola que golpeaba sus costados, la imagen igual del mar inmenso, llano del que no sobresalía nada, tan llano que daba ganas de edificar sobre él algo que cortara, que hendiera el horizonte, una ciudad por ejemplo. Una ciudad como París, como Nueva York, como Londres. No una casa o un edificio aislados como una montaña, no una ola más alta que rompiera la línea del horizonte. No. Una tempestad o una ciudad, una serie tan grande de casas que, en número suficiente para hacerse fronda, hacen ya una ciudad.

1º entrar en situación de pasado – insomnio separado de la noche anterior – descubrir mejor la insistencia y claridad de la gota de agua – primer esfuerzo hacia la imagen – descripción exacta del corredor – 2º el filtro – cómo la gota creó la imagen de ese rincón de mi casa, ya completa – 3º el ruido y el objeto – 4º multiplicación del ruido, un camarote, el mar – el mar y el campo, la ciudad y el mar – 5º París [sic] palmera, isla para formar un país – y así como en el campo emerge la montaña, así en el mar la ola – así la ciudad en el valle – necesidad de límite.

outubro 12, 2010

Brasiliana Eletrônica

A formidável coleção publicada durante parte do século XX pela Companhia Editora Nacional está de volta, agora para todos os que têm acesso à Internet. A promessa é de que os 415 volumes da coleção sejam disponibilizados, mas a Brasiliana Eletrônica já nos oferece dezenas de clássicos, vários injustamente esquecidos ou desprezados.

Lançada logo após a Revolução de 1930, idealizada por Octales Marcondes Ferreira, presidente da Companhia Editora Nacional, a Brasiliana foi dirigida, durante 25 anos, pelo educador Fernando de Azevedo, depois substituído pelo historiador Américo Jacobina Lacombe. Sua abrangência se estende pelas principais áreas do saber, reunindo autores nacionais e estrangeiros que se debruçaram sobre o Brasil, inclusive com a importante contribuição dos viajantes europeus que percorreram o país no século XIX.

Muitos desses volumes são, até hoje, leitura obrigatória para aqueles que desejam compreender o Brasil. Boas-vindas a uma das melhores iniciativas da web de língua portuguesa!

setembro 30, 2010

A arte da leitura

"É preciso ler num estado de espera, como se acompanha com os olhos, na saída de uma estação ferroviária, a leva de passageiros em que se funde um amigo."

- A vida intelectual - seu espírito, suas condições, seus métodos, de Antonin-Dalmace Sertillanges (É Realizações Editora).

"Leio de tudo e, seguindo o conselho básico de Nabokov, também releio"

Colhi no sempre ótimo Não gosto de plágio esta entrevista com Jorio Dauster, um dos nossos principais tradutores. Um trechinho:

Eu tenho amor às letras. Ao contrário de Castro Alves, que num poema afirmou “eu sinto em mim o borbulhar do gênio”, nunca me subiu das entranhas a ânsia de dizer algo novo ou de forma diferente, a meu juízo a única boa razão para alguém desejar ser escritor. Sendo assim, adotei com muito orgulho o prazer vicário de trazer para o vernáculo aquilo que alguém produzira de modo notável em outro idioma – gente como Vladimir Nabokov, J.D. Salinger, Thomas Pynchon, Philip Roth e Ian McEwan, que devem figurar em qualquer seleção dos maiores das últimas décadas.

Inconsistência

Brincadeiras desse tipo podem ser definidas com uma só palavra: bobagem.

Neste momento, somos 57.640

O número de pessoas que assinaram o Manifesto em Defesa da Democracia continua crescendo. Se você, caro leitor, ainda não assinou, clique aqui.

setembro 25, 2010

Desmando e autoglorificação

Nada tenho a acrescentar ao editorial de O Estado de S. Paulo, a não ser o que afirmou meu amigo Jonas Lopes: "comemoremos a honestidade e o bom senso" do Estadão.

O mal a evitar

A acusação do presidente da República de que a Imprensa "se comporta como um partido político" é obviamente extensiva a este jornal. Lula, que tem o mau hábito de perder a compostura quando é contrariado, tem também todo o direito de não estar gostando da cobertura que o Estado, como quase todos os órgãos de imprensa, tem dado à escandalosa deterioração moral do governo que preside. E muito menos lhe serão agradáveis as opiniões sobre esse assunto diariamente manifestadas nesta página editorial. Mas ele está enganado. Há uma enorme diferença entre "se comportar como um partido político" e tomar partido numa disputa eleitoral em que estão em jogo valores essenciais ao aprimoramento se não à própria sobrevivência da democracia neste país.

Com todo o peso da responsabilidade à qual nunca se subtraiu em 135 anos de lutas, o Estado apoia a candidatura de José Serra à Presidência da República, e não apenas pelos méritos do candidato, por seu currículo exemplar de homem público e pelo que ele pode representar para a recondução do País ao desenvolvimento econômico e social pautado por valores éticos. O apoio deve-se também à convicção de que o candidato Serra é o que tem melhor possibilidade de evitar um grande mal para o País.

Efetivamente, não bastasse o embuste do "nunca antes", agora o dono do PT passou a investir pesado na empulhação de que a Imprensa denuncia a corrupção que degrada seu governo por motivos partidários. O presidente Lula tem, como se vê, outro mau hábito: julgar os outros por si. Quem age em função de interesse partidário é quem se transformou de presidente de todos os brasileiros em chefe de uma facção que tanto mais sectária se torna quanto mais se apaixona pelo poder. É quem é o responsável pela invenção de uma candidata para representá-lo no pleito presidencial e, se eleita, segurar o lugar do chefão e garantir o bem-estar da companheirada. É sobre essa perspectiva tão grave e ameaçadora que os eleitores precisam refletir. O que estará em jogo, no dia 3 de outubro, não é apenas a continuidade de um projeto de crescimento econômico com a distribuição de dividendos sociais. Isso todos os candidatos prometem e têm condições de fazer. O que o eleitor decidirá de mais importante é se deixará a máquina do Estado nas mãos de quem trata o governo e o seu partido como se fossem uma coisa só, submetendo o interesse coletivo aos interesses de sua facção.

Não precisava ser assim. Luiz Inácio Lula da Silva está chegando ao final de seus dois mandatos com níveis de popularidade sem precedentes, alavancados por realizações das quais ele e todos os brasileiros podem se orgulhar, tanto no prosseguimento e aceleração da ingente tarefa - iniciada nos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique - de promover o desenvolvimento econômico quanto na ampliação dos programas que têm permitido a incorporação de milhões de brasileiros a condições materiais de vida minimamente compatíveis com as exigências da dignidade humana. Sob esses aspectos o Brasil evoluiu e é hoje, sem sombra de dúvida, um país melhor. Mas essa é uma obra incompleta. Pior, uma construção que se desenvolveu paralelamente a tentativas quase sempre bem-sucedidas de desconstrução de um edifício institucional democrático historicamente frágil no Brasil, mas indispensável para a consolidação, em qualquer parte, de qualquer processo de desenvolvimento de que o homem seja sujeito e não mero objeto.

Se a política é a arte de aliar meios a fins, Lula e seu entorno primam pela escolha dos piores meios para atingir seu fim precípuo: manter-se no poder. Para isso vale tudo: alianças espúrias, corrupção dos agentes políticos, tráfico de influência, mistificação e, inclusive, o solapamento das instituições sobre as quais repousa a democracia - a começar pelo Congresso. E o que dizer da postura nada edificante de um chefe de Estado que despreza a liturgia que sua investidura exige e se entrega descontroladamente ao desmando e à autoglorificação? Este é o "cara". Esta é a mentalidade que hipnotiza os brasileiros. Este é o grande mau exemplo que permite a qualquer um se perguntar: "Se ele pode ignorar as instituições e atropelar as leis, por que não eu?" Este é o mal a evitar.

setembro 23, 2010

Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos



Manifesto em Defesa da Democracia

Numa democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.

Acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático. Hoje, no Brasil, inconformados com a democracia representativa se organizam no governo para solapar o regime democrático.

É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais.

É inaceitável que militantes partidários tenham convertido órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos.

É lamentável que o Presidente esconda no governo que vemos o governo que não vemos, no qual as relações de compadrio e da fisiologia, quando não escandalosamente familiares, arbitram os altos interesses do país, negando-se a qualquer controle.

É inconcebível que uma das mais importantes democracias do mundo seja assombrada por uma forma de autoritarismo hipócrita, que, na certeza da impunidade, já não se preocupa mais em valorizar a honestidade.

É constrangedor que o Presidente não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há “depois do expediente” para um Chefe de Estado. É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa manifestação escancarada de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura. Ele não vê no “outro” um adversário que deve ser vencido segundo regras, mas um inimigo que tem de ser eliminado.

É aviltante que o governo estimule e financie a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e de empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses.

É repugnante que essa mesma máquina oficial de publicidade tenha sido mobilizada para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.

É um insulto à República que o Poder Legislativo seja tratado como mera extensão do Executivo, explicitando o intento de encabrestar o Senado. É deplorável que o mesmo Presidente lamente publicamente o fato de ter de se submeter às decisões do Poder Judiciário.

Cumpre-nos, pois, combater essa visão regressiva do processo político, que supõe que o poder conquistado nas urnas ou a popularidade de um líder lhe conferem licença para ignorar a Constituição e as leis. Propomos uma firme mobilização em favor de sua preservação, repudiando a ação daqueles que hoje usam de subterfúgios para solapá-las. É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo.

Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade.

Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos.

***

Caro leitor: se você, como eu, defende as mesmas ideias, assine a petição online.

setembro 03, 2010

Recado de Borges aos críticos e escritores herméticos

Quando comecei a escrever, pensei que tudo devia ser definido pelo escritor. Dizer, por exemplo, «a lua» era estritamente proibido; era necessário encontrar um adjectivo, um epíteto para a lua. (Claro que eu estou a simplificar as coisas. Sei disso porque escrevi por diversas vezes La luna, mas isto é uma espécie de símbolo que eu fazia.) Bem, eu pensava que tudo tinha de ser definido e que não podiam ser usadas frases com fórmulas comuns. Eu nunca teria dito; fulano de tal entrou e sentou-se, porque isso era demasiado simples e demasiado fácil. Pensei que tinha de encontrar uma forma interessante de o dizer. Agora, descobri que esse tipo de coisas, em geral, é um aborrecimento para o leitor. Mas julgo que a raiz da questão reside no facto de que quando um escritor é jovem sente, de certa forma, que aquilo que vai dizer é bastante tolo ou óbvio, um lugar-comum, e por isso tenta escondê-lo sob uma ornamentação barroca; ou, se não for isso, caso ele se mostre moderno, faz o contrário: põe-se permanentemente a inventar palavras ou a referir-se a aviões, a comboios ou ao telégrafo e ao telefone porque está a fazer tudo o que pode para ser moderno. Depois, à medida que o tempo passa, sentimos que as nossas ideias, boas ou más, devem tentar passar essa ideia ou esse sentimento ou esse estado de espírito para o leitor. Se, ao mesmo tempo, estamos a tentar ser, digamos, um Sir Thomas Browne ou um Ezra Pound, então é impossível. Por isso acho que um escritor começa sempre por ser demasiado complicado – está a jogar diversas partidas em simultâneo. Quer proporcionar um determinado estado de espírito; ao mesmo tempo tem de ser contemporâneo, e se não for contemporâneo, então é um reaccionário e um clássico. Quanto ao vocabulário, a primeira coisa que um jovem escritor decide fazer, pelo menos neste país, é mostrar aos seus leitores que possui um dicionário, que conhece todos os sinónimos de uma palavra […]

Jorge Luis Borges em Entrevistas da Paris Review

(Do ótimo Pó dos Livros.)

agosto 31, 2010

Relato monocórdio

Na edição desta semana da revista Sibila, minha análise sobre o conto espichado Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra: “No limiar da antificção”.

agosto 26, 2010

O ironista macambúzio

No Rascunho de agosto, escrevi sobre o injustamente esquecido João Francisco Lisboa e seu Jornal de Timon.

agosto 05, 2010

Manuel Antônio de Almeida e Primos

Em julho, concentrei-me principalmente em duas leituras: de Manuel Antônio de Almeida, o genial Memórias de um sargento de milícias – romance que não se dobra às classificações da crítica –, relido para a série sobre prosadores brasileiros que escrevo para o Rascunho, e a coletânea Primos – histórias da herança árabe e judaica, organizada por Adriana Armory e Tatiana Salem Levy, que analisei para a revista Sibila.

julho 10, 2010

Cordialidade exagerada

Perguntado por Miguel Conde, de O Globo, se hoje os críticos receiam fazer julgamentos de valor, Karl Erik Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, responde diretamente:

“As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa afinidade, essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira.”

É o que acabo de ler no Café Colombo. E só posso concordar plenamente com Karl Erik Schøllhammer.

julho 04, 2010

“Perdulários de felicidade”

A relação do homem com a divindade, com o sagrado, sempre me fascinou. Mas não me refiro ao fascínio do antropólogo ou de qualquer outro estudioso, necessariamente frio e distante. Refiro-me a um interesse apaixonado que, se bem recordo, ganhou força quando, perto dos quinze anos, aproximei-me da espiritualidade carmelita. Há um pequeno Carmelo em minha cidade natal, onde duas dezenas de irmãs vivem segundo a regra de santa Teresa D’Ávila, e acostumei-me a visitá-lo quase todas as semanas. Até hoje, tendo passado dos cinquenta anos, é impressionante lembrar da alegria daquelas irmãs, do estranho fulgor que a tudo iluminava quando a janela do locutório se abria e as cortinas escuras eram afastadas. Não, não era uma alegria qualquer, mas uma perturbadora autossuficiência, como se elas bastassem a si próprias e todo o resto, incluindo minha visita, nada mais fosse que uma gralha insignificante, incapaz de perturbá-las na lenta e silenciosa obra de composição que retomavam a cada dia, muito antes do amanhecer, obedecendo às leis de um tipógrafo invisível e onisciente. De onde vinha aquela energia, aquela radiância, aquela fé despojada de angústia? G. K. Chesterton diz, em seu breve ensaio sobre Francisco de Assis, que “houve monges que foram perdulários de felicidade, enquanto nós somos dela avarentos”. Pois devo dizer que conheci alguns desses privilegiados. Havia naquelas carmelitas descalças a “secreta nobreza” de que Chesterton nos fala – e elas eram movidas pela “simples afirmativa de que esse furioso e desconcertante universo é governado pela justiça e pela misericórdia”. Fé que invejo, e que se aproxima ou se afasta do meu coração, sem nunca preencher-me completamente.

junho 26, 2010

Sibelius e Lauro Machado Coelho no Estado de Minas


Na edição de 19 de junho do “Pensar”, suplemento de cultura do Estado de Minas, o editor João Paulo Cunha publicou minha resenha sobre a biografia de Sibelius – O cantor da Finlândia (Editora Algol) – escrita por Lauro Machado Coelho.

junho 17, 2010

Enfim, o dicionário

Como deve se comportar um detetive que jamais soluciona o crime? Entrega-se ao desespero ou se dedica, incansável, a reunir pistas que às vezes o aproximam, às vezes o afastam de sua busca? São as perguntas que fiz a mim mesmo nos últimos anos, enquanto procurava um bom exemplar do esgotadíssimo Dicionário Analógico da Língua Portuguesa: ideias afins/thesaurus, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo.

Tenho o Analógico do jesuíta Carlos Spitzer, uma reimpressão de 1959 – dicionário, aliás, que nunca me decepcionou –, mas o Azevedo, que pude folhear a primeira vez há boas décadas, tornou-se um desses amores perseguidos com desespero, paixão que aumenta na exata medida em que os obstáculos crescem. Certa vez, o exemplar do sebo era velho demais; em outra, o volume, quase perfeito, trazia dezenas de anotações, máculas feitas, com esferográfica, por algum leviano. E numa única oportunidade – manhã chuvosa, nas imediações da Praça da Sé –, diante do exemplar verdadeiramente angelical, tive de conter meu ímpeto, pois o preço salmodiado pelo alfarrabista era in-de-co-ro-so. Livro inatingível – e ponto!

Mas como viver sem ele? E, pior, como escrever sem ele? É claro que dramatizo, pois sou um bibliômano, o que posso fazer?, desses que sonham com bibliotecas infinitas, no silêncio das quais um gato repousa, enquanto o virar da página lembra uma prece carmelita...

Pois bem, amigos. A Editora Lexicon acaba de resolver não todos os meus problemas – pois minha biblioteca segue longe da infinitude, disputando cada mínimo espaço deste apartamento –, mas reeditou o Analógico de Santos Azevedo, edição atualizada e revista, trabalho meticuloso, de amor à língua portuguesa, que devemos a Carlos Augusto Lacerda e Paulo Geiger.

Agora, sempre que a ideia surgir, mas pouco clara, insegura quanto à melhor palavra para torná-la concreta, debatendo-se como louca nas dobras do meu cérebro, sem encontrar a porta de saída, basta estender a mão e abrir o Thesaurus: ele me dará o vocábulo certo, justo, liame perfeito entre a abstração e a realidade. Agora, os devaneios podem ter nome – nenhuma quimera morrerá sem o merecido batismo. Hoje vou dormir em paz.

junho 12, 2010

Um sabor a fel

No momento em que a ficção contemporânea brasileira converge para um único tipo de voz, um “eu” na maioria das vezes ensimesmado, narrador que é testemunha e, quase sempre, protagonista da própria história, cuja supervalorização tornou-se empobrecedor lugar-comum, é reconfortante se deparar com o narrador onisciente de Immaculada, escrito pela tradutora Ivone C. Benedetti. É sobre esse romance que falo em minha crítica na revista Sibila.

maio 27, 2010

A prevalência da generalização

Um dos ensaios que mais gosto de reler é o que fecha o volume do Curso de Literatura Europeia de Vladimir Nabokov: “A arte da literatura e o senso comum”. São tantos os insights, as colocações acertadas e esclarecedoras do autor de Lolita, que seria possível escrever vários ensaios sobre eles – ou apenas, o que sempre faço, desfrutá-los, saboreando o estilo, a ironia, os longos parágrafos em que Nabokov tece as mais inesperadas associações. Todo escritor, principiante ou não, deveria ler esse texto e as aulas de Nabokov, principalmente para abandonar um erro cada vez mais comum, ao menos na literatura brasileira contemporânea: o de conceder prevalência às generalizações aparentemente dominantes – e não ao que realmente importa, o que realmente pode descrever um fato ou um personagem: o pormenor incongruente.

maio 26, 2010

Convite aos amigos

Estarei no 2º Festival Internacional da Leitura de Campinas (SP), no próximo dia 3 de junho, às 18 h, no Largo do Rosário, participando de uma mesa sobre Ficção Científica, ao lado do escritor, meu querido amigo, Carlos Orsi Martinho. Será uma ótima oportunidade para debatermos sobre a crítica literária no Brasil e sua relação com um gênero até hoje desprezado entre nós. Até lá!

maio 14, 2010

Censura no Irã

O governo brasileiro demonstra, mais uma vez, seu inequívoco apoio à ditadura iraniana, agora num momento especial. Não, não me refiro ao programa nuclear da teocracia que pretende destruir Israel, nega o Holocausto e financia o terrorismo em todo o mundo, mas à 23ª Feira Internacional do Livro de Teerã, que termina em 16 de maio. Matéria de hoje do El País radiografa o mercado editorial no Irã, onde, à semelhança do que ocorre na maioria dos países muçulmanos, a religião é indissociável das estruturas políticas, sociais e econômicas.

Nas palavras de um editor que, é claro, não quis se identificar, com a chegada, em 2005, de Mahmoud Ahmadinejad ao poder, centenas de escritores, poetas, historiadores e pensadores foram censurados. A reportagem não deixa dúvidas: “Apesar de os porta-vozes oficiais demonstrarem que só no ano passado se publicaram 3.000 novos títulos, fontes do setor recordam que, nos dois primeiros anos da nova administração, 70% dos livros antes autorizados foram proibidos”.

São quase 200 mil títulos expostos na feira, mas a maioria é formada por obras religiosas e técnicas. Quanto à literatura, além dos autores nacionais censurados no todo ou parcialmente, as traduções de escritores estrangeiros passam por um processo de, digamos, depuração, adaptando os livros ao gosto dos censores, às vezes cortando parágrafos inteiros. O mesmo ocorre em relação aos clássicos da literatura persa. Um professor universitário afirma nunca comprar edições modernas desses livros, mas apenas as publicadas antes da revolução.

As informações do El País só confirmam o que Eli Barnavi relata em seu As religiões assassinas:

Em dez séculos, o mundo árabe-muçulmano traduziu menos obras estrangeiras do que a Espanha de hoje em um único ano! Censura política e religiosa, falta de curiosidade, desprezo pelo que se faz em outras partes do mundo, tudo se combina para transformar uma civilização no passado brilhante e dominante em um vasto gueto. [...] Hoje, praticamente já não se pode ensinar as ciências em árabe e os diplomas das universidades do mundo muçulmano não valem nem o papel em que estão impressos. [...] Em resumo, a experiência científica muçulmana consiste em uma idade do ouro do século IX até o século XIV, à qual se segue um longo eclipse; em um modesto renascimento no século XIX; por último, nos últimos decênios do século XX, em um fosso aparentemente infranqueável entre, de um lado, o Islã, e, de outro, ciência e modernidade.

Apesar da repugnância, quando vejo o Brasil defendendo países desse tipo junto à comunidade internacional, recordo-me de uma das falas do nosso governante máximo: “A liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual”. – De repente, tudo se esclarece.

maio 11, 2010

Para que servem os críticos literários – e por que não é bom matá-los

Encontrei esta edificante historinha no blog da Livraria Pó dos Livros, de Lisboa, e decidi compartilhar com vocês:

A importância de um bom crítico

No quarto de um célebre escritor, vivia um rato que não se alimentava de outra coisa senão dos textos que o famoso escritor produzia durante o dia. Este rato era a sua desgraça. Nem mesmo um gato vigilante conseguia chegar-lhe ao pêlo, nem as mais estranhas invenções, as mais variadas e engenhosas ratoeiras, conseguiam evitar a destruição de páginas inteiras de prosa, escrita no mais doce papel que o escritor se via obrigado a reescrever continuamente. Certo dia o escritor decide, em vez de escrever ficção, passar a escrever poesia, na esperança que o rato não gostasse do género. Entusiasmado, inspirado com tal ideia, escreve num só dia um livro inteiro. Cansado vai dormir. No dia seguinte, para seu espanto, jazia em cima de um dos seus poemas o rato.
– Finalmente morreste! – pensou o escritor – Que sorte a minha, apenas tiveste tempo de roer o meu primeiro verso.
Reza a história que desde aí nunca mais o escritor teve sucesso. Nem na prosa, muito menos na poesia.

Anos mais tarde, ao perguntarem-lhe qual teria sido a causa da sua desgraça enquanto escritor, terá respondido:

– Matei o meu melhor e mais exigente crítico, com apenas um mau poema.

Nota: esta história foi inspirada numa fábula da literatura espanhola.

Jaime Bulhosa

maio 05, 2010

O que parcela da crítica literária quer?

O que se esconde no substrato do texto prolixo e confuso de Flora Sussekind é uma determinada concepção de literatura – uma concepção excludente, preconceituosa e autoritária.

Concepção, aliás, defendida por significativa parcela da crítica literária brasileira contemporânea. Para esses críticos, ou a literatura se transforma num vanguardismo eterno – no qual a linguagem é elevada à condição de única protagonista da obra, o que gera livros sem enredo e sem personagens, narrativas nas quais enredo, personagens, fluxo de tempo, configuração do espaço etc. amontoam-se num verdadeiro caos –, ou abraça cegamente o dogma do politicamente correto – e cria obras em que as chamadas minorias sociais são sempre apresentadas como boas, justas, belas, corretas e bem-aventuradas. Ou, ainda, une as duas possibilidades e dá vida a narrativas que, além de incompreensíveis, são também demagógicas.

Para tais críticos, a obra literária que não se incluir em alguma dessas categorias já está classificada, de antemão, como mero exercício beletrista, ultrapassado e, portanto, condenado ao desprezo absoluto desses luminares.

Não importa que, ao seguir esses dogmas absurdos, a produção literária se distancie radicalmente do leitor, transformando-o em um ser incapacitado para decodificar o texto, condenando-o a ler sem entender, ou ler defrontando-se com dificuldades sobre dificuldades. O que importa para tais críticos é a mistificação de que a verdadeira obra de arte literária é, necessariamente, enigmática, difícil de ser compreendida. Ou seja, a leitura, para ser uma experiência realmente libertadora, deve se tornar, necessariamente, um exercício obscuro, aflitivo – uma nova forma de tortura.

Além de expulsar o leitor do sistema literário-cultural, essas concepções críticas reforçam um fenômeno exótico: o dos escritores que se bajulam mutuamente em suas seitas particulares, repetindo o que Antonio Candido já detectou nos primórdios da vida cultural brasileira: a situação artificial em que os próprios escritores são “ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio”.

É óbvio, portanto, que esses mandarins pretendam assassinar duplamente Wilson Martins (como propõe Flora Sussekind). Isso não é nenhuma novidade, pois já assassinam, no nascedouro, qualquer narrativa que não siga os limites estreitos que eles pretendem impor à literatura nacional.

maio 03, 2010

Em defesa de Wilson Martins

Transcrevo abaixo, com a autorização de Affonso Romano de Sant'Anna, o artigo que ele publicou hoje em seu blog, resposta sóbria, lúcida e destemida ao artigo de Flora Sussekind:

Crítica do necrológio e necrológio da crítica

Affonso Romano de Sant'Anna

1. Crítica do necrológio

Quando Wilson Martins morreu, várias pessoas escreveram lembrando sua obra. E algumas lamentaram sua morte. Mas Flora Sussekind lamenta que Wilson Martins tivesse vivido. Por isto, no no texto publicado n’O Globo (23.04.2010), afirma expressamente que talvez seja necessário “matar uma vez mais Wilson Martins”. Ou seja, além da morte física, ela se esforça por extirpar os textos de Wilson da literatura brasileira.

No texto de Flora, em que tantos leitores já acusaram estilística e retoricamente um pensamento tortuoso e mal formulado, é possível, com mais paciência, desentranhar vestígios de questões que poderiam ser mais claramente expostas. Ao que parece, ela pretende fazer uma análise da situação da crítica literária no país. E aí logo surge a questão: será que realiza o seu intento? Dentro deste propósito ela se detém não exatamente sobre a obra do crítico Wilson Martins, mas sobre o seu suposto necrológio feito especialmente por três críticos: Alcir Pécora, Miguel Sanchez Neto e Sérgio Rodrigues.

Vou tratar aqui da “maltratada” questão do “necrológio” e do mito do “herói solitário”, deixando para outra oportunidade outros equívocos da autora.

Aos ingênuos poderia parecer uma simples metáfora essa de “matar uma vez mais Wilson Martins”, pois o objetivo dela seria uma reflexão para se rever a crítica literária no país. Não é bem assim. “Matar” é tirar a vida, eliminar, apagar, limpar os vestígios. E a ensaísta está tão incomodada com o nome ou o fantasma de Wilson Martins rondando seu imaginário que investiu contra aqueles que escreveram sobre ele quando ele faleceu. Não basta ter ocultado, censurado o nome do crítico nos cursos de literatura quando ele era vivo, agora é necessário também censurar (quem sabe “matar”?) os que escrevem sobre ele.

Se algum estudante de linguística, de literatura ou psicolinguística aplicar a técnica da “análise de conteúdo” à diatribe que ela escreveu, vai notar que palavras como “ressentimento”, “agressivamente”, “virulência”, “truculência”, “exacerbado” pavimentam sintomaticamente o seu texto.

Isto consubstancia uma “pulsão de morte” sub specie crítica que no plano político e social aproxima-se de ideologias e regimes que incitam a matar, extirpar nomes e imagens de adversários como forma de apropriar-se da história.

Dito isto, tenho que me demorar ainda mais um pouco sobre a questão do necrológio, já que a autora do interessante ensaio “O sapateiro Silva” insiste em sapatear sobre a sepultura de Wilson Martins. Consideremos o sentido do necrológio tanto na sociedade primitiva quanto na civilizada. Diga-se logo, que ao negar aos outros que façam o necrológio afetivo ou intelectual de Wilson Martins, talvez Flora esteja escrevendo um epitáfio para si mesma enquanto crítica, além de promover uma desleitura do que significam os necrológios na antropologia e na sociologia.

A celebração, a evocação dos mortos não é uma aberração nem pode ser abolida pela pretensa racionalidade de alguém, pois são exigência do imaginário humano. As sociedades recorrem a esses rituais para elaborar sentimentos, remorsos, fantasias e até dialogar com a morte. Diz L. V. Thomas que “o homem é um animal que enterra seus mortos”. Acrescenta Françoise Charpentier que “nenhum grupo humano se desinteressa de seus cadáveres”. E Michel Ragon (“L'espace de la mort”) arrola umas 15 maneiras que as diversas culturas elaboraram de lidar com seus mortos: fazendo tumbas, incinerando, praticando o canibalismo, expondo-os às bestas ferozes, jogando ao mar, lançando ao fogo, colocando em urnas, árvores, nichos etc.

Na tragédia Antígona, Sófocles narra a patética estória da heroína procurando enterrar seu irmão Polinice, ao qual o rei Creonte negava o direito de sepultura. Antígona enfrenta o poder e enterra o irmão. Negar a sepultura e o ritual necrológio a Polinice foi o princípio crítico da decadência de Creonte, como advertiu o sábio Tirésias.

Só nos regimes e mentalidades autoritários destroem-se cemitérios, apaga-se a história, faz-se tabula rasa do passado. Os familiares dos mortos na última ditadura que tivemos (e eu vivi este período) ainda clamam pelo direito de enterrar seus “desaparecidos”. De resto, neste caso, é bom lembrar aquele imperador chinês, que mandou não só matar todos os sábios da corte, mas queimar seus livros, e decretou que a história começasse com ele mesmo.

Por sua vez, a cultura barroca, refazendo os costumes arcaicos, elaborou uma oratória, um “elogio fúnebre” que era um gênero literário dos mais considerados e com uma função social específica. Phillippe Ariès nota que uma das características da sociedade industrial “contemporânea” (e Flora se quer “contemporânea”), é perverter, disfarçar e até interditar o sentimento de morte. No entanto, mesmo modernamente, o “necrológio”, sobre ser um fato socioantropológico, é também um gênero jornalístico e literário cultivado com singularidade pelo The Times e The New York Times, que têm redatores especializados no assunto.

Lembro essas coisas, mas me dou conta que o incômodo que a figura de Wilson Martins provoca em Flora é de tal ordem, que ela está execrando até mesmo os necrológios feitos sobre cadáver recente.

Talvez se devesse lhe dizer: Flora, você não tem que levar flores à tumba de Wilson Martins. Mas também não tem que dar chutes nem tentar destruir sua lápide.

2. O mito do herói solitário

No processo de decomposição da imagem de Wilson Martins, Flora Sussekind refere-se, por duas vezes, ao fato que alguns o consideram um “herói solitário”. Ela ironiza essa expressão ou idéia que estaria expressa ou subentendida nos textos escritos sobre ele.

Aqui a questão torna-se constrangedora e pode-se supor que ela desconhece não só a obra como a própria vida desse anti-herói. É querer ignorar que ele abriu mão de agremiações literárias, abriu mão de grupelhos e de partidos e centrou-se desde sempre no seu fazer crítico. É não saber que por ter as opiniões críticas que tinha, foi despedido de vários jornais. E no último jornal em que trabalhou, ou não recebia pagamento ou tinha que se esforçar para tal. É querer negar o que há de solitário e heróico em realizar, sozinho, uma obra complexa como História da Inteligência Brasileira, em 7 volumes. É querer invalidar além dos 2 volumes de A crítica literária no Brasil, os 17 volumes de críticas jornalísticas. É querer negar que ele é o único historiador e crítico que fez uma leitura abrangente de nossa cultura de 1500 até 2010. Ninguém fez isto entre nós. E noutras literaturas não sei de nada semelhante. Durante sua trajetória, alguns críticos evidentemente surgiram, mas trabalharam apenas alguns anos e pararam ou foram desestimulados. Ele persistiu desde 1942 até 2010, portanto, quase 70 anos. E é isto que a autora de “Até segunda ordem não risquem nada”, com meia dúzia de argumentos mal alinhavados, quer jogar no lixo.

Alguém pode até dizer malevolamente: melhor se Wilson Martins tivesse lido menos e pensado mais. Como tirada tem lá sua graça momentânea, mas não se ajusta a ele. Quem pretende ser crítico e historiador tem mesmo que ler “tudo” e não pode resumir-se a elogiar seus confrades e a operar pela exclusão (coisa que é muito familiar à autora de “Papéis colados”). E Wilson Martins, crítico semanal, estava na “linha de fogo” opinando sobre obras ainda não canonizadas. Como escrevi em outra ocasião, ao longo de cinco décadas de atividade crítica ele pode ter feito um inimigo por semana, ou seja, uns 2.600 ao longo de 50 anos. E certamente Flora é um deles, pois Wilson Martins mostrou o que ele chama de “falácias” de seu livro “O Brasil não é longe daqui”.

Lembremos, por outro lado, que essa obra extensiva e intensiva que Wilson Martins produziu, ele a elaborou não com uma equipe, mas individualmente, só, solitariamente, num tempo em que não havia Google ou internet. E mais, a executou apesar das suas deficiências físicas, movendo-se com dificuldade para chegar aos locais de trabalho e fazer suas pesquisas. Por isto, embora eu possa discordar dele quanto à leitura ou o julgamento de um autor ou outro, ou de uma idéia ou outra, diria que ele com sua deficiência física é mais imprescindível à cultura brasileira que outros com sua deficiência intelectual.

Uma das coisas mais irônicas, paradoxais, senão patéticas, que se pode constatar no texto de Flora é que ela, em alguns aspectos, está defendendo as mesmas teses de Wilson Martins, sem o saber. Em 1996, numa entrevista dada a José Castelo, o crítico já assinalava a “morte da crítica literária no Brasil”. Dizia, com a autoridade que tinha, que “nos jornais propagou-se com rapidez a idéia de que a crítica literária não tem mais importância”. Portanto, Flora está atrasadíssima no seu diagnóstico.

Garcia Marquez tem o conhecido romance, Crônica de uma morte anunciada, e vários autores têm livros onde falam da segunda morte de seus personagens. Isto me ocorre enquanto analiso o que está sucedendo nessa tentativa de novo assassinato de Wilson Martins. Na verdade, a “morte” de Wilson Martins já havia sido anunciada há muito. Ele mesmo se encarregou de divulgar isto, quando, naquela entrevista em 1996, disse que a morte da crítica literária estava em curso com as mudanças ocorridas na imprensa e na vida social. Neste sentido, o texto de Flora está atrasado 14 anos em relação ao de Wilson ao vir falar agora sobre “a perda de lugar social da crítica”. E mais: torna-se repetitivo. Quando Wilson assinalava, com tristeza e ironia, que a crítica literária estava sendo assassinada, havia um toque autobiográfico nisto, porque ele era crítico e estava, portanto, falando de seu próprio extermínio social. E essa que seria simbolicamente a morte de um gênero literário tornou-se algo mais concreto e físico quando o próprio Wilson foi demitido do jornal que, agora, sem crítico de literatura, alardeia o artigo de Flora sobre a morte da crítica literária.

Portanto, com a proposta de novo assassinato de Wilson Martins e diante desse desejo de “matar uma vez mais” o crítico, estamos diante de uma terceira morte. Mas como nas regras onde o mais é menos e o menos é mais, está ocorrendo um renascimento da obra do crítico, as pessoas estão procurando os seus volumes para entender a razão de tanto desejo de morte em relação a ele. A virulência desejada sobre seu nome está provocando interesse em torno de sua obra, para o tormento dos que querem autoritariamente controlar a vida e o sistema literário.

maio 02, 2010

“Poderoso esforço de síntese e de notável erudição”

O historiador Gunter Axt também acompanha os debates em torno do texto de Flora Sussekind – e conclui: “História da Inteligência Brasileira [de Wilson Martins] é resultado de um poderoso esforço de síntese e de notável erudição. Não é e nem precisa ser a interpretação última e mais acabada da cultura e da literatura brasileiras. É mais uma. E, em minha modesta opinião, muito útil, para todo aquele que deseja alcançar uma aproximação razoável ao Brasil”.

Vale a pena ler outros intelectuais que se manifestaram, parcial ou totalmente, contra o texto da ensaísta:

Affonso Romano de Sant'anna

Deonísio da Silva

Luís Antônio Giron

Sérgio Rodrigues

maio 01, 2010

Diplomacia contra a truculência

Hoje foi a vez de Sérgio Rodrigues responder à metralhada de Flora Sussekind. Para o meu gosto pessoal, usou de muita cordialidade. Nem sempre a diplomacia é a melhor resposta à truculência. Mas, enfim, sempre me esqueço, este é um país cordial. Sérgio não deixa de apontar, com acerto, ao menos dois graves problemas de parcela da crítica literária contemporânea: a “rendição incondicional à antropologia”, enaltecendo os escritores que se preocupam apenas em ser porta-vozes dos “despossuídos literários: mulheres, negros, gays, favelados”, e o endeusamento da “transgressão”, do “escrever mal”. É uma pena que, ao fazê-lo, tenha se sentido obrigado a diminuir o valor de Wilson Martins, que, em sua opinião, “se ao morrer andou sendo saudado por aí como um gigante, em evidente exagero, isso parece se dever menos à sua estatura do que ao cenário liliputiano construído ao seu redor” – afirmação com a qual não posso, de forma alguma, concordar.

No entanto, temos de saudar o fato de o violento artigo da mandarina ter sido contestado por alguns no transcorrer da última semana: além de Sérgio Rodrigues, Affonso Romano de Sant'anna, Deonísio da Silva e Luís Antônio Giron.

abril 29, 2010

“Wilson Martins nos legou uma atitude ética”

Agora é Luís Antônio Giron, da Época, quem fala sobre o artigo de Flora Sussekind. Na opinião do crítico, a ensaísta assumiu o “papel de carrasca exumadora de cadáveres”. E ele completa: “Não compreendo ela chutar um crítico morto, que é pior que um cachorro morto neste país que odeia quem aponte erros, quem denuncie ideias, quem leia com atenção”. Na opinião de Giron, Wilson Martins “foi um exemplo ético a ser seguido por qualquer pessoa que queira se devotar ao estudo da cultura”.

Ao lado de Affonso Romano de Sant'anna e Deonísio da Silva, Luís Antônio Giron forma o solitário trio de intelectuais que, até agora, demonstrou coragem e caráter para se contrapor ao mandarinato da crítica literária brasileira.

abril 28, 2010

A arte de escrever

Começa hoje o curso “Em Busca da Prosa Perdida - Fundamentos e Possibilidades da Arte da Escrita”, ministrado on-line pelo escritor Antônio Fernando Borges. Acabo de assistir à Aula Zero e me parece uma ótima oportunidade para todos aqueles que desejam utilizar a língua portuguesa não só como instrumento de comunicação, mas principalmente como “arte da expressão e da tradução de ideias em palavras”.

Hoje, quando a língua portuguesa é ultrajada do mais alto dignitário do país até alguns novíssimos escritores – que tentam esconder sua insegurança e sua negligência em relação à língua citando ambíguas teorias estéticas –, um curso com tais objetivos precisa ser recebido com entusiasmo e otimismo.

abril 27, 2010

“Jamais discordou de Wilson Martins quando ele era vivo”

Depois de Affonso Romano de Sant'anna, hoje foi a vez de Deonísio da Silva rebater o panfleto de Flora Sussekind. Segundo o escritor e jornalista, Sussekind

“perpetrou várias indelicadezas e equívocos no caderno 'Prosa&Verso' de O Globo (24/4/2010). Não apenas com o que disse, mas com o que costuma silenciar, pois ela deve conhecer a qualidade de livros e autores que omite em suas pesquisas. Como disse Eduardo Portella, 'o silêncio é aquilo que se diz naquilo que se cala'.

O pior de tudo é que jamais discordou de Wilson Martins quando ele era vivo. Em cima de seu caixão, com o profissional morto, ela, não só desanca sua obra, como ainda fala mal de quem falou bem do crítico [...]”.


O que posso dizer? É a ética dos mandarins da crítica literária nacional.

abril 26, 2010

Ódio esquerdista

Affonso Romano de Sant'anna está certíssimo: o artigo de Flora Sussekind, publicado em O Globo, no último sábado, não passa de uma "metralhadora alucinada e giratória". Nada surpreendente quando se trata dos esquerdistas, peritos em autoritarismo e processos de limpeza ideológica. A impressão que se tem, ao final da leitura desse texto rançoso, cheio dos jargões e da sintaxe confusa que parcela da crítica literária brasileira adora usar, é de que terminamos de ler o libelo acusatório de um tribunal stalinista. E ainda há quem siga, de olhos fechados, esses inquisidores-mores!

abril 05, 2010

O ingrato trabalho do tradutor na lusofonia

Desidério Murcho, que não passa uma semana sem publicar comentários instigantes no blog Crítica, escreve hoje um ótimo texto em defesa de Denise Bottmann e sua corajosa campanha contra o plágio de traduções no Brasil. Levando o problema para o âmbito dos países de língua portuguesa, sem excluir Portugal, Murcho acerta na mosca: “na lusofonia, o tradutor não é considerado um autor, o que é inaceitável. Os nomes dos tradutores de países culturalmente mais sofisticados vêm na capa dos livros, e os tradutores têm direitos intelectuais sobre a sua tradução: são co-autores, juntamente com o autor original. É um trabalho intelectual criativo, único, irrepetível. E que dá muito, muito trabalho, para ser bem feito. É inaceitável usar o trabalho de um tradutor, eliminando-lhe o direito de autoria”.

Aos interessados em acompanhar o debate, sugiro que leiam o blog de Denise, Não gosto de plágio, e, caso se sensibilizem com sua causa, assinem o Manifesto de Apoio que conta com quase três mil assinaturas. Como já afirmei aqui em outras oportunidades, Denise Bottmann presta inestimável serviço à cultura brasileira, ao mercado editorial e a todos nós, que amamos os livros.

março 27, 2010

Tolstói sem pedantismos

A crítica literária de José Maria Guelbenzu tem, dentre várias qualidades, a de ser isenta do artificialismo que, cada vez mais, contamina parcela significativa de seus colegas brasileiros. Entre nós, tornou-se um hábito saturar o texto crítico com a terminologia estruturalista, abusar dos academicismos, como se esses vocábulos, completamente distantes dos leitores de jornal, pudessem acrescentar algum significado etéreo, inusitado ou surpreendente ao texto literário. Na verdade, não passam de pedantismos, transformando o texto que deveria esclarecer numa selva fechada, impenetrável ao leitor comum, algaravia que, às vezes, serve para esconder a pusilanimidade de julgar.

Vejam, por exemplo, o texto de Guelbenzu deste sábado, no Babelia, em que ele fala sobre o Anna Kariênina: transparência, objetividade. Não, o crítico não diminui suas ideias, não as torna fáceis apenas para ser lido por muitos, mas explicita seu julgamento com clareza. O leitor informado percebe, nos alicerces, todo o aparato crítico contemporâneo, os avanços e retrocessos da ciência da linguagem, mas ninguém precisará recorrer a um dicionário – e, chegando ao final, somos recompensados: sabemos exatamente o que Guelbenzu quis dizer, o texto não turvou nossa compreensão; ao contrário, nos aproximou ainda mais do universo de Tolstói.

Leiam. O texto flui. O sentimento de intimidade é tão grande, que parece estar escrito em português.

março 20, 2010

Advertência aos defensores da liberdade

Roberto Romano, com sua habitual lucidez, escreve no Estadão sobre “os cosméticos que tombam da face governamental”. A fala dogmática do PT, maquiada pelo marketing político nos últimos anos, começa, de fato, a reaparecer, e o professor de Ética da Unicamp lembra que as afirmações do cínico nº 1 do país, feitas em 1986, continuam atuais, corroboradas pelos recentes discursos ridicularizando os presos políticos da ditadura cubana e pelas conferências, ditas “populares”, sobre a cultura e os meios de comunicação. Voltam, assim, à tona, aquelas perigosas e temerárias palavras: “a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual”.

Pensamento herdeiro da pior e da mais criminosa cepa esquerdista, esse que pretende submeter a liberdade individual a certa imaginária “coletividade”, palavrinha sob a qual nós – os que não se entregam ao sono da consciência e permanecem vigilantes – sabemos muito bem que, semelhante ao lobo fantasiado de cordeiro, se esconde outra, adorada pelos totalitaristas: Estado.

É o que a esquerda quer: garrotear a imprensa, submeter as manifestações culturais à pauta censória do politicamente correto, ditar os rumos da pesquisa científica (vejam-se, por exemplo, os critérios tácitos seguidos hoje pelo CNPq para concessão de bolsas na área de Humanas) e, passo a passo, controlar cada escaninho do país. Roberto Romano está certo: as falas do presidente da República devem servir como advertência àqueles que amam e defendem a verdadeira liberdade.

março 19, 2010

Poetão ou poetinha?

Demolidora, para dizer o mínimo, a crítica de Luis Dolhnikoff ao livro Esquimó, de Fabrício Corsaletti, publicada na Revista Sibila. As conclusões de Dolhnikoff são bem-humoradas e devastadoras: "Um meninão brincalhão e espertalhão, que ao notar o pote da geleia geral a transbordar e a lambuzar a estreita prateleira da poesia, meio esquecida na parte menos luminosa da cozinha bagunçada da arte brasileira, foi lá e meteu sua colherzinha".

Ao que parece, somos, eu e Dolhnikoff, as únicas vozes que ousam divergir do prematuro e irresponsável consenso que se formou em torno dos livrinhos, em prosa e verso, de Corsaletti. Para os que se interessarem, analiso a prosa do "poetinha", como a Folha de S. Paulo o qualificou em fevereiro deste ano, no texto "A pequena alegria de Corsaletti", também na Revista Sibila.

março 14, 2010

O hábito da infâmia

O magnífico e corajoso artigo do escritor Antonio Muñoz Molina, publicado na edição de ontem do Babelia, é um verdadeiro repto. Depois de uma semana sem ler, afastado dos meus prazeres por uma cirurgia que me deixará de cama por cerca de um mês, o artigo de Muñoz Molina produz efeitos semelhantes aos de uma exitosa antibioterapia. Deveria ser inoculado nos intelectuais brasileiros que silenciam diante das atrocidades cometidas pelo regime cubano e pactuam com os discursos insultuosos de Lula. Discursos, aliás, que, repletos de ironia vulgar, não passam de exemplos da pior logorreia.

"Yo pensaba que ser de izquierdas era estar a favor de la igualdad justiciera de los seres humanos, del derecho de cada uno a vivir soberanamente su vida. No imaginaba que duraría tanto la costumbre estalinista de injuriar a los perseguidos y a los asesinados." (Antonio Muñoz Molina)

março 05, 2010

Os pecados de Wilson Martins

Em artigo publicado no Rascunho deste mês e no site do Instituto Millenium, falo sobre Wilson Martins, esse nobre (no sentido que Ortega y Gasset dá à palavra) intelectual que, dentre outras inúmeras qualidades, se recusou a seguir modismos, não era paternal, não silenciava diante de erros e omissões – e não se fazia de cego ou surdo quando discordava dos supostos mandarins da literatura brasileira.

março 04, 2010

Tzvetan Todorov e Wilson Martins

Tzvetan Todorov, em entrevista publicada na Bravo! deste mês, nos presenteia com ideias lúcidas, infelizmente desprezadas pela maioria dos acadêmicos e críticos literários brasileiros:

“O bom crítico – e também o bom professor – deveria recorrer a toda sorte de ferramentas para desvendar o sentido da obra literária, de maneira ampla. Esses instrumentos são conhecimentos históricos, conhecimentos linguísticos, análise formal, análise do contexto social, teoria psicológica. São todos bem-vindos, desde que obedeçam à condição essencial de estar submetidos à pesquisa do sentido, fugindo da análise gratuita”.

Diante dessa visão equilibrada – para a qual Todorov evoluiu depois de superar sua adesão irrestrita ao estruturalismo –, lembrei-me de Wilson Martins, que defendia pontos de vista semelhantes e que, ao fazer crítica literária, sempre rejeitou o que chamava de “monismo de julgamento”, afirmando que a crítica jamais poderia se “confinar nos princípios e métodos de uma determinada família espiritual, mas exigiria, ao contrário, a contribuição simultânea de todas elas”.

Wilson Martins pagou um alto preço por caminhar na contramão dos modismos que, no Brasil, a maioria segue sem refletir. Mas, vejam que ironia, Todorov, antes um monista, veio ao seu encontro.

março 03, 2010

Três verdades em sete minutos

É uma pena que a TV Estadão não tenha disponibilizado a íntegra da palestra de Leopoldo Bernucci realizada no evento “Euclides da Cunha 360º”, em agosto de 2009.

Bernucci, que é professor de Literatura Latino-Americana na Universidade da Califórnia e autor de três obras fundamentais sobre Euclides da Cunha – a edição comentada de Os Sertões (Editora Ateliê/Imprensa Oficial do Estado), A imitação dos sentidos (Edusp) e, ao lado de Francisco Foot Hardmann, a edição da Poesia reunida (Unesp) –, toca, no pequeno trecho a que podemos assistir, em três questões fundamentais:

1. Salienta a importância de se ler a obra, mas também de se conhecer o homem, a biografia, retirando (os comentários a seguir são meus) os estudos literários da influência nefasta do estruturalismo – que, além de outros pecados, se pretende exclusivo, superior às demais escolas de interpretação e portador da única chave possível para se analisar e compreender não só o texto, mas todas as formas de linguagem e a própria vida.

2. Ainda que não cite nomes, alerta para o fato de que, nos últimos anos, as leituras da obra euclidiana estão como que fossilizadas, pois excessivamente laudativas, capazes somente de coroá-la com jaculatórias.

3. E, finalmente, cita um aspecto curioso, para dizer o mínimo, do nosso país, no qual se cultua um autor controverso – ou seja, que, ao invés de ser endeusado, deveria ser debatido –, prática, certamente, fruto de uma cultura em que não se aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na qual o fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua compreensão. Um país estrambótico (adjetivo meu) no qual há mais editoras que livrarias.

Vale a pena acompanhar, atentamente, a fala de Bernucci.