maio 29, 2011

A norma culta da língua

Poucas pessoas, nas últimas semanas, manifestaram-se com equilíbrio e lucidez sobre o tema. Hoje, o romancista João Ubaldo Ribeiro deu uma lição de bom senso: “Ela [a norma culta da língua] é necessária para preservar e aprimorar a precisão da linguagem científica e filosófica, para refinar a linguagem emocional e descritiva, para conservar a índole da língua, sua identidade e, consequentemente, sua originalidade. Ao contrário do que entendi de certas opiniões que li sobre o assunto, a norma culta não tem nada de elitista, é ou devia ser patrimônio e orgulho comuns a todos. Elitismo é deixá-la ao alcance de poucos, como tem sido nossa política.

maio 27, 2011

Os fundamentalistas da transgressão

Na opinião do filósofo Fabrice Hadjadj, da qual compartilho, parcela da sociedade, formada principalmente por ateus e agnósticos, decidiu “sacralizar seu gesto de ruptura”: hoje “existe um integrismo da transgressão e seus sacerdotes são tão mais ferozes quanto mais persuadidos estão de ser os turibulários da liberdade absoluta”.

maio 24, 2011

Cardeal Gianfranco Ravasi: “Superar uma comunicação unidirecional”

O encontro mundial de blogueiros – Vatican Meeting Blog –, realizado pelos Pontifícios Conselhos para a Comunicação Social e para a Cultura no último dia 2 de maio, em Roma, continua a dar frutos. Os 150 blogueiros reunidos à sombra do Vaticano, selecionados entre mais de 750 inscritos (este blogueiro, apesar de escolhido, infelizmente não pôde comparecer), ainda repercutem os resultados das discussões do evento que, apesar da curta duração, promete se tornar um marco na história das relações entre a Santa Sé e a comunicação que se desenvolve na Web.

A mais importante reflexão elaborada até o momento veio à luz no L’Osservatore Romano de 22 de maio: um artigo do cardeal Gianfranco Ravasi, que ocupa hoje a presidência do Pontifício Conselho para a Cultura e das Comissões Pontifícias para os Bens Culturais da Igreja e de Arqueologia Sacra. Faço um parêntese aqui: o cardeal Ravasi foi, durante anos, professor de exegese bíblica, membro da Pontifícia Comissão Bíblica e prefeito da Biblioteca Ambrosiana, uma das mais importantes da Europa. Autor de inúmeras obras entre elas, um monumental comentário do Livro dos Salmos (Il Libro dei Salmi), em três volumes, já em sua 10ª edição , dele temos, no Brasil, só um livro: o pequeno mas precioso Interpretar a Bíblia (Editora Ave-Maria). Esse descuido não é surpreendente num país que privilegia lançamentos editoriais católicos pouco ortodoxos ou francamente ligados à condenada Teologia da Libertação, mas o eclesiástico hoje responsável por uma das iniciativas mais importantes da Santa Sé, o Átrio dos Gentios, sobre o qual já falamos aqui, merece ter sua obra traduzida, com urgência, em língua portuguesa.

O cardeal começa seu artigo recordando McLuhan – fala da injusta e banal simplificação da famosa frase “O meio é a mensagem” – e observa como o desenvolvimento tecnológico, nas últimas décadas, fez com que “a comunicação deixasse de ser um instrumento semelhante a uma prótese, passando a ocorrer num ambiente total, numa atmosfera global que envolve e penetra tudo e todos”. E um dos “emblemas mais significativos dessa rede de comunicação é o blog”.

Para o exegeta, a web é, hoje, “um mundo incandescente, portador dos aspectos mais criativos da capacidade humana – mas, ao mesmo tempo, destinado a englobar as contradições e, inclusive, a possível degeneração do pensamento e da cultura”.

Com sensibilidade e equilíbrio, o cardeal desenvolve seu pensamento: “Podemos dizer que nos encontramos em novos espaços e novas catedrais – espaços virtuais, é claro, mas habitados por pessoas que se comunicam, exprimem ideias, contam histórias, propõem interrogações e aguardam por respostas. Não podemos, portanto, evitar este pedido de diálogo, levando-se em conta que a exigência nasce de um mundo fluido, complexo, articulado e em permanente palpitação”.

Demonstrando a abertura e o interesse da Santa Sé em compreender o novo mapa da comunicação, o cardeal afirma que “a Igreja precisa decifrar a mentalidade, a cultura e a filosofia que anima os blogueiros, para que seja capaz de uma nova evangelização, de incidir na opinião pública, tornando-se interativa e não ancorada apenas na comunicação em forma de pirâmide, estranha à cultura do nosso tempo”.

“Deve-se superar uma comunicação unidirecional, sem possibilidade de diálogo e de troca, destinada a passar uma impressão de rigidez e autorreferência”, salienta o cardeal, apontando a importância de blogs e twitters na formação humana e cultural, capazes, segundo ele, de “prestar um importante serviço para o crescimento da comunidade humana no que diz respeito à democracia e ao diálogo”.

As conclusões do cardeal Ravasi sobre o Vatican Meeting Blog são otimistas: “Os espaços sacro e profano estão realizando uma nova modalidade de conexão, que inaugura um verdadeiro e peculiar Átrio dos Gentios em rede – e de possibilidades ilimitadas”. Para ele, o encontro segue aberto, ainda gerando frutos – “um encontro interminável enquanto a blogosfera estiver aberta à verdade e à palavra de Cristo”.

O Evangelho e a lógica da web

É impossível ler as palavras do cardeal Ravasi e não recordarmos a mensagem de Bento XVI para o próximo 5 de junho, 45º Dia Mundial das Comunicações Sociais. O papa diz que “existe um estilo cristão de presença também no mundo digital: traduz-se numa forma de comunicação honesta e aberta, responsável e respeitadora do outro. Comunicar o Evangelho através dos novos midia significa não só inserir conteúdos declaradamente religiosos nas plataformas dos diversos meios, mas também testemunhar com coerência, no próprio perfil digital e no modo de comunicar, escolhas, preferências, juízos que sejam profundamente coerentes com o Evangelho”.

Contudo, segundo as palavras de Bento XVI, devemos estar “particularmente atentos aos aspectos da mensagem evangélica que possam desafiar algumas das lógicas típicas da web. Antes de tudo, devemos estar cientes de que a verdade que procuramos partilhar não extrai o seu valor da sua ‘popularidade’ ou da quantidade de atenção que lhe é dada. Devemos esforçar-nos mais em dá-la conhecer na sua integridade do que em torná-la aceitável, talvez ‘mitigando-a’. Deve tornar-se alimento quotidiano e não atração de um momento. A verdade do Evangelho não é algo que possa ser objeto de consumo ou de fruição superficial, mas dom que requer uma resposta livre”. E completa o pontífice: “Mesmo se proclamada no espaço virtual da rede, a mensagem do Evangelho sempre exige ser encarnada no mundo real e dirigida aos rostos concretos dos irmãos e irmãs com quem partilhamos a vida diária”.

De fato, como tive a oportunidade de afirmar em recente entrevista, nosso dever, enquanto católicos conscientes, é não ter receio ou medo de anunciar a Verdade. Não podemos nos preocupar se a radicalidade do Evangelho não é exatamente a mensagem que a humanidade relativista quer ouvir. Não devemos nos preocupar com conversões em massa ou com estatísticas. Tenho de anunciar Cristo, mostrar a minha fé e tomar uma decisão que, como dizia o cardeal Joseph Ratzinger, “diz respeito a toda a estrutura da vida, repercute no meu âmago. É uma decisão relacionada com toda a orientação da minha própria existência: como vejo o mundo, como eu próprio quero ser e como hei de ser”.

maio 20, 2011

“A ideologia do homossexualismo é uma insídia contra a legítima autonomia do pensamento”

O vídeo colocado abaixo (publicado nos blogs Contos do Átrio e O possível e o Extraordinário) é uma pequena mas revoltante amostra do que o governo e parte do Congresso Nacional preparam, sob o comando da senadora Marta Suplicy, para este país: uma lei – o PL-122 – cujo objetivo é amordaçar a nação. Vejam como a senadora se coloca acima das instituições, pretendendo conceder, parcialmente, num gesto magnânimo, o que já é um direito inatacável e incontestável de todos os cidadãos: plena liberdade de expressão. Direito que será restringido, limitado pelo PL-122:


A prática de amordaçar os cidadãos, comum nos governos esquerdistas, hábeis em silenciar os que deles discordam – usando inclusive de variadas formas de violência –, ressurge, no caso do PL-122, apoiada numa nova ideologia: a ideologia do homossexualismo. Para falar dela, prefiro dar voz a uma das mais ilustres figuras da Igreja Católica: o cardeal Giacomo Biffi, que foi arcebispo de Bolonha de 1983 a 2003. Vejam o que ele afirma em seu livro de memórias, Memorie e digressioni de un italiano cardinale:

“A ideologia do homossexualismo – como se compreende, com frequência, as ideologias quando se tornam agressivas e chegam a ser politicamente vencedoras – converte-se em uma insídia contra a nossa legítima autonomia de pensamento: quem não compartilha dela corre o risco da condenação em uma espécie de marginalização social e cultural.

Os ataques à liberdade de expressão começam pela linguagem. Quem não se resigna a aceitar a ‘homofilia’ (quer dizer, o apreço teórico às relações homossexuais), é acusado de ‘homofobia’ (etimologicamente, o medo da homossexualidade). Deve ficar bem claro: quem se manteve forte, iluminado pela luz da palavra inspirada e vive no ‘temor de Deus’ não teme nada, exceto a estupidez, frente à qual, como dizia Bonhoeffer, estamos indefesos. [...]

O problema substancial que se coloca é este: ainda se permite, em nossos dias, sermos discípulos fiéis e coerentes com os ensinamentos de Cristo (que há milênios têm inspirado e enriquecido toda a civilização ocidental) ou devemos nos preparar para uma nova forma de perseguição, promovida por homossexuais facciosos, por seus cúmplices ideológicos e também por aqueles que deveriam ter o dever de defender a liberdade intelectual de todos, inclusive dos cristãos?”.

E o cardeal também chama nossa atenção às Sagradas Escrituras:
 
“O que São Paulo deixava claro como ocorrido no mundo greco-romano [o cardeal se refere à Carta aos Romanos, Capítulo 1, versículos 21 a 32] mostra-se profeticamente correspondente ao que se verifica na cultura ocidental nos últimos séculos. A exclusão do Criador – até se proclamar, grotescamente, há algumas décadas, a ‘morte de Deus’ – teve como consequência (e quase como um castigo intrínseco) a propagação de uma visão sexual aberrante, desconhecida (quanto à sua arrogância) nas épocas passadas”.

maio 16, 2011

Cultura, tradição e cristianismo

“Desde suas origens, o cristianismo – a experiência do encontro com Cristo vivo e ressuscitado, e da redenção – se relacionou, de maneira estreitíssima, com a cultura, com a criação e a articulação da cultura. Não poderia ser de outro modo: se Jesus é o Senhor, e se a comunhão com Ele, vivida como experiência humana na comunhão da ekklesia, é o início do Reino dos Céus – ou seja, o cumprimento de todas as promessas que Deus fez ao homem e de todas as esperanças do coração humano –, então quem se encontra com Cristo adquire, na experiência mesma desse encontro e de vir a ser ‘igreja’, uma certeza que afeta decisivamente a compreensão de si mesmo e dos demais, de todas as relações e de todas as atividades humanas. Essa certeza também afeta, decisivamente, a compreensão e a configuração do tempo e do espaço, afeta a relação com toda a realidade. E a cultura é precisamente isso: o modo como os homens – o sujeito da cultura é sempre uma comunidade, um povo – compreendem, vivem, articulam e expressam, em textos de diversos tipos (textos escritos, cantados ou esculpidos, ou textos configurados na criação de liturgias e instituições, na práxis da vida cotidiana), a experiência e a compreensão que têm da realidade e de sua própria relação com a realidade. Outro nome para designar a cultura assim compreendida é a palavra ‘tradição’. Uma cultura é sempre uma tradição, e uma tradição se expressa sempre culturalmente.”  Dom Javier Martínez Fernández, Arcebispo de Granada

“Uma fé que não se torna cultura é uma fé não de modo pleno acolhida, não inteiramente pensada e nem com fidelidade vivida.”  – Beato João Paulo II

maio 15, 2011

Autoritarismo tropical

Não temos políticos de oposição. Quanto aos meios de comunicação, é preciso garimpar, todos os dias, alguma matéria que não repita lugares-comuns favoráveis ao governo. O país está corrompido. E as exceções ou não encontram espaço para se manifestar ou preferem o silêncio. Como disse Dora Kramer, hoje, no jornal O Estado de S. Paulo,

“o governo caminha, devagar e no uso dos instrumentos disponíveis na democracia, para conquistar o controle das instituições construindo uma hegemonia político, social, legislativa, cultural e mais o que puder açambarcar até consolidar-se na posição de suprema instância de decisão.

Faz isso nas barbas de uma sociedade inerte e de uma oposição cúmplice que parecem ter dificuldades para decodificar sinais e ligar os pontos”.

Não, não é um problema de ordem política, caros leitores, mas, sim, de ordem moral. Tudo se resume a uma só palavra: oportunismo.

maio 13, 2011

Não há ruptura na história da liturgia

Bento XVI passará à história como mais um papa que jamais abdicou de suas prerrogativas – e delas fez uso com grande sabedoria. Vejam, por exemplo, a Instrução Sobre a aplicação da Carta Apostólica Motu Proprio Summorum Pontificum, assinada pela Pontifícia Comissão Ecclesia Dei mas redigida sob supervisão do papa. Demonstrando espírito profundamente pastoral, o documento:

a) retoma a Carta Apostólica Motu Proprio – e também a Carta do Santo Padre aos Bispos que acompanha o “Motu Proprio” –, de maneira a não deixar dúvidas sobre o fato de que “não existe qualquer contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum. Na história da Liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial”;

b) salienta o princípio segundo o qual “cada Igreja particular deve concordar com a Igreja universal, não só quanto à fé e aos sinais sacramentais, mas também quanto aos usos recebidos universalmente da ininterrupta tradição apostólica, os quais devem ser observados tanto para evitar os erros quanto para transmitir a integridade da fé, de sorte que a lei de oração da Igreja corresponda à lei da fé”;

c) garante claramente o direito dos fiéis à “Liturgia Romana segundo o Usus Antiquior, considerada como um tesouro precioso a ser conservado”, salientando que se trata de “uma faculdade concedida para o bem dos fiéis e que por conseguinte deve ser interpretada em sentido favorável aos fiéis, que são os seus principais destinatários”;

d) ressalta a autoridade episcopal, afirmando que “os bispos diocesanos, segundo o Código de Direito Canônico, devem vigiar em matéria litúrgica a fim de garantir o bem comum e para que tudo se faça dignamente, em paz e serenidade na própria Diocese, sempre de acordo com a mens do Romano Pontífice”; e

e) a fim de que prevaleça sempre entre nós o verdadeiro espírito de amor e fraternidade – e não haja espaço para comportamentos cismáticos ou rebeldes –, “os fiéis que pedem a celebração da forma extraordinária não devem apoiar nem pertencer a grupos que se manifestam contrários à validade ou à legitimidade da Santa Missa ou dos Sacramentos celebrados na forma ordinária, nem ser contrários ao Romano Pontífice como Pastor Supremo da Igreja universal”.

Aliás, não devemos esquecer o que diz o nosso Catecismo, em seu parágrafo 1124: “A fé da Igreja é anterior à fé do fiel, que é convidado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos apóstolos. [...] A liturgia é um elemento constitutivo da santa e viva Tradição”.  Não há dúvida de que as palavras de São Paulo na 1ª Carta aos Coríntios – “Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido” – ecoam, claramente, nesta nova instrução.

Nota (em 14.05.2011): O L'Osservatore Romano de hoje, no artigo “Il significato dell'istruzione ‘Universae Ecclesiae’”, assinado por Monsenhor Guido Pozzo, secretário da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, afirma: Ora, le due forme ordinaria e extraordinaria della liturgia romana, sono un esempio di reciproco incremento e arricchimento. Chi pensa e agisce al contrario, intacca l’unità del rito romano che va tenacemente salvaguardata, non svolge autentica attività pastorale o corretto rinnovamento liturgico, ma priva piuttosto i fedeli del loro patrimonio e della loro eredità a cui hanno diritto.

maio 11, 2011

“Meu nome é Lázaro”

Ontem, depois de ler um texto de G. K. Chesterton, uma pergunta passou a me importunar: por que, afinal, voltei à Igreja Católica? De seminarista na juventude a agnóstico, depois ateu, niilista convicto, o que me fez, aos 51 anos, mudar? Há tempos sentia-me, como Ezequiel, caminhando por um vale repleto de ossos secos, mas sem que Deus me falasse. Sob a aparência de uma vida normal, a insatisfação se agitava – e havia uma angústia renitente, pronta a despertar comigo todas as manhãs. Talvez tenha sido ela o instrumento que me trouxe, de reflexão em reflexão, até o estranho sonho que, há alguns meses, desencadeou a mudança. Quanto a ele, não o contarei por dois motivos: por discrição e porque, como disse Edith Stein, certamente inspirada num sermão de São Bernardo de Claraval, “secretum meum mihi” – “meu segredo é só meu”. Quem precisa saber os detalhes já os sabe, a começar Dele, que inspirou a viagem onírica e me permitiu, por Sua graça, colocar-me novamente na Sua presença. Foram anos de dúvidas e questionamentos até a metanoia gerada naquela estranha noite e na manhã seguinte, quando, com a ajuda de uma amiga, decifrei o sentido de tudo – do sonho, da minha vida e do vazio que eu alimentara anos seguidos. Mas agora, não. Não mais. Chega de procurar nas pessoas, nos livros, na ciência e no meu infeliz hedonismo o que eles não podem oferecer por um só motivo: não O têm. “Inveni cor meum” – repito, todos os dias, com São Bernardo de Claraval: “Encontrei meu coração”. Ele estava lá, escondido no Amor que, desde sempre, pulsa por mim. Como escreveu Chesterton, aos 48 anos, logo após sua Primeira Comunhão:

The sages have a hundred maps to give
That trace their crawling cosmos like a tree,
They rattle reason out through many a sieve
That stores the sand and lets the gold go free:
And all these things are less than dust to me
Because my name is Lazarus and I live.

maio 10, 2011

Minhas críticas

Com a recente mudança do site do jornal Rascunho, todos os meus textos, publicados nos últimos quatro anos, estão, provisoriamente, indisponíveis na web. Por esse motivo, passarei a publicá-los, na versão integral, aqui no blog. Começo hoje, com Adolfo Caminha e seu Bom Crioulo:

Subliteratura e vingança

Rodrigo Gurgel

A obra do cearense Adolfo Caminha só confirma minhas conclusões, de que os frutos do naturalismo brasileiro – essa “planta exótica”, segundo o sugestivo enunciado de Lúcia Miguel-Pereira – são, em sua maior parte, excêntricos quanto aos temas e medíocres no que se refere à forma. No caso específico de Caminha, contudo, há um desonroso complemento: seus principais livros, A Normalista e Bom Crioulo, nasceram, principalmente, do rancor.

Órfão de mãe aos dez anos, Caminha, doente depois de sofrer as agruras de uma terrível seca, é enviado a Fortaleza pelo pai. Dali, parte para o Rio de Janeiro, onde um tio o inscreve na Escola Naval. Republicano servindo na Marinha, a mais monarquista das instituições militares, o escritor não se adapta à Corte e solicita o retorno ao Ceará. Aos 22 anos, apaixona-se pela esposa de um alferes; esta, para escândalo dos fortalezenses, abandona o marido e passa a viver com Caminha. As pressões obrigam-no a abandonar sua carreira nas forças armadas e, apesar do novo emprego – de insignificante escriturário na Tesouraria da Fazenda –, a se transferir, em 1893, para o Rio de Janeiro, quando publica A Normalista, livro no qual pretendeu ajustar contas com a sociedade que praticamente o expulsara de Fortaleza. Dois anos mais tarde, surge Bom Crioulo – e desta vez a vingança terá como alvo a Marinha.  

Certos críticos modernos pretendem minimizar essa característica – a do romance enquanto desforra – e, também, isentar Caminha de suas responsabilidades, colocando nos ombros das “instituições conservadoras” a culpa pelo destino do escritor. Esquecem-se, no entanto, de que, em 1884, quando ele discursa na Escola Naval, diante do próprio imperador, e critica a monarquia, isso não o impede de ser promovido a guarda-marinha (1885) e segundo-tenente (1888). Na verdade, livrar Adolfo Caminha de culpa é uma solução deveras fácil para quem preferiu agir como se atos não produzissem consequências. O arroubo imaturo cobrou seu preço – e o autor, considerando-se perseguido e injustiçado, decidiu revidar com a arma que tinha à mão.

Ressentimento

A escritora e editora Louise DeSalvo estudou, em Concebido com maldade, alguns casos semelhantes ao de Caminha, de autores que escreveram movidos pelo desejo de vingança. Ainda que suas reflexões sejam superficiais e discutíveis, o livro permite a abertura de um debate sobre os motivos éticos da produção literária. DeSalvo enaltece as obras que nascem do ressentimento, legitimando seu raciocínio por meio de um freudismo superficial, muito disseminado nos estudos acadêmicos, ou servindo-se de citações genéricas, exemplos daquele beletrismo que serve para justificar qualquer coisa. Por exemplo, a retórica da frase “Nenhuma motivação é demasiado vil para a arte”, de John Gardner (a pesquisadora certamente se refere ao romancista e crítico norte-americano e não ao escritor inglês), esconde um juízo que pretende abarcar todos os comportamentos, inclusive os mais levianos. Ora, se nada é “demasiado vil para a arte”, o homicídio praticado pelo escritor cujo objetivo último é apenas descrever com perfeição um assassinato seria uma motivação aceitável?

A escritora Anaïs Nin também se mostra condescendente, o que, para quem conhece sua biografia, não é nenhuma surpresa:

O escritor é o duelista que jamais luta na hora marcada, que guarda um insulto como qualquer outro objeto curioso, um item de colecionador, despeja-o mais tarde sobre sua mesa e empenha-se verbalmente num duelo com ele. Algumas pessoas chamam isso de fraqueza. Eu chamo de adiamento... Pois ele preserva, coleciona o que depois vai explodir em sua obra.

De minha parte, não considero tal atitude “fraqueza” ou “adiamento”, mas apenas covardia. E os gestos que nascem da pusilanimidade, não só no que se refere à arte, costumam ser desprezíveis.

Se, como afirma DeSalvo, “a obra de arte substitui uma inadequação” e é somente um “meio infantil, regressivo e escapista de lidar com um fracasso”, então os gênios da literatura são, necessariamente, monstros morais ou, numa hipótese mais amena, adultos que não amadureceram. Tais generalizações servem ao intuito da autora, com certeza, mas fecham os olhos à complexidade não só dos escritores, mas de todos os seres humanos. Como classificar, por exemplo, Tolstoi, a quem Isaiah Berlin – em seu magnífico ensaio “O porco-espinho e a raposa” – se refere como “o mais trágico entre os grandes escritores”, que se debateu, por toda a vida, entre “o orgulho e o ódio por si mesmo, onisciente e duvidando de tudo, frio e violentamente apaixonado, desdenhoso e pronto a se humilhar, atormentado e desapegado, rodeado por uma família que o adorava, por seguidores dedicados, pela admiração de todo o mundo civilizado e, ainda assim, quase totalmente isolado”?

Outro exemplo de DeSalvo, Henry Miller dizia que sua escrita talvez parecesse “monstruosa (para alguns) pois era uma violação, porém eu me tornei um indivíduo mais humano depois dela. Eu retirava o veneno do meu sistema sanguíneo”. Não sabemos o que significou para ele tornar-se “mais humano” – e desconhecemos se sua afirmação é sincera –, mas escrever movido por um desejo maléfico e distribuir o seu “veneno” a milhares de leitores é, no mínimo, uma forma discutível de purificar a própria consciência. De qualquer forma, se Caminha teve oportunidade semelhante, pôde desfrutar dela por pouco tempo, pois morreu dois anos depois de publicar Bom Crioulo. Suas tentativas patológicas de retaliação, contudo, ficaram. Em A Normalista, segundo Alfredo Bosi, “o ressentimento do autor, apoucado pela vida de amanuense no meio hostil de Fortaleza, leva-o a nivelar todas as personagens no sentido das pequenas vilezas que a hipocrisia do meio se esforça em vão por encobrir”. Como veremos, não será diferente no caso de Bom Crioulo.

Linguagem

Se fosse possível sintetizar, numa única expressão, esse livro que parcela da crítica endeusa pelo fato de ser o primeiro “romance homossexual” da literatura brasileira, eu diria que se trata de uma cascata de adjetivos e lugares-comuns. Há adjetivos às pencas. Nem José de Alencar conseguiu usar tantos. O leitor abre o Capítulo I e lá encontra esta fórmula de gosto duvidoso: “[...] o silêncio infinito das esferas obumbradas pela chuva de ouro do dia”. O protagonista, marujo a quem se apelidou de Bom Crioulo, é

um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada.

Tal maçante retórica irá perseguir o leitor até a última linha desse conto à força estendido. E virá acompanhada de “horizontes cor-de-rosa”, “coragem espartana”, o espírito que se debate “como um pássaro agonizante”, o “azul inconsútil” do céu, a ventania que tem “a força extraordinária de titãs”, “desejos de touro”, “frenesi de gozo”, o céu “alto e imenso na eterna glória da luz”, o “silêncio infinito da noite clara”, o som da viola que “embriaga a alma” e mais quantos lugares-comuns se possa desejar.

O exagero das descrições é evidente desde a primeira linha. O ódio não permitiu ao escritor filtrar um pouco os seus ímpetos qualificativos. A corveta que servirá de palco à cena inicial do livro é “velha e gloriosa”, tem o “casco negro” e as “velas encardidas de mofo”, assemelha-se à “sombra fantástica de um barco aventureiro”, mas não passa de uma “velha carcaça flutuante”, “esquife agourento [...] quase lúgubre na sua marcha vagarosa” – “um grande morcego apocalíptico de asas abertas sobre o imenso mar”. E estes são apenas trechos selecionados dos três breves parágrafos que abrem o Capítulo I... Logo, logo veremos o vento “açoitando os cabos, fustigando a superfície da água” e, pasmem, “gemendo tristemente salmodias de violoncelo fantástico”.

Apaixonado por Aleixo, um grumete de 15 anos, Bom Crioulo sofre o “forte desejo de macho torturado pela carnalidade grega”, seja lá o que isso for. Sempre a acompanhar o casal de namorados, lá está, “no alto do grande hemisfério que a luz do meio-dia incendiava”, nada mais que “o azul, sempre o azul claro, o azul imaculado, o azul transparente e doce, infinito e misterioso”. E à noite, é claro, não falta a lua, eterna protetora dos apaixonados, que necessariamente surge, primeiro, “cor de fogo”, para depois se tornar “fria e opalescente, misto de névoa e luz, alma da solidão”, “derramando sobre o mar essa luz meiga, essa luz ideal que penetra o coração do marinheiro” e atormenta os leitores que conservaram um mínimo de bom senso.

Bom Crioulo não se excita, apenas, mas sente “uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta” – por um momento, o leitor tem a clara impressão de que ele se jogará pela amurada. Já em terra, no aconchego de uma “triste e desolada baiuca da Rua da Misericórdia”, o negro venera as “formas roliças de calipígio” do seu amante. Os dois vivem numa suja água-furtada, “espécie de sótão roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico”, mas que apresenta “sombra voluptuosa”, “penumbra acariciadora” e, graças aos rabiscos do escritor, se transforma num “ignorado e impudico santuário de paixões inconfessáveis”. E se não estamos satisfeitos com o palavrório, ainda podemos saber que Aleixo é um “belo modelo de efebo que a Grécia de Vênus talvez imortalizasse em estrofes de ouro límpido e estátuas duma escultura sensual e pujante”. Convenhamos, nem o pior dos românticos produziria uma frase tão afetada.

Mas vamos em frente. Bom Crioulo, levado ao hospital da Marinha depois de receber chibatadas – punição habitual à época –, chega aos estertores da saudade:

Um desespero surdo, um desespero incrível, aumentado por acidentes patológicos, fomentado por uma espécie de lepra contagiosa que brotara, rápido, em seu corpo, onde sangravam ainda, obstinadamente, lívidas marcas de castigo – um desespero fantástico enchia o coração amargurado de Bom Crioulo.

Como vemos, o hiperbolismo causa efeito oposto àquele que o autor busca. Depois de algumas páginas abarrotadas de adjetivos que pretendem, repetidamente, construir a mesma ênfase expressiva, o recurso começa a produzir incredibilidade e, logo depois, aversão. No caso acima, não basta que o “desespero” seja “surdo” e “incrível” – ele também precisa ser “fantástico”, além de vir acompanhado de indescritíveis “acidentes patológicos” e de “uma espécie de lepra contagiosa”. Não é só a cena que desmorona diante do olhar saturado do leitor, mas a própria verossimilhança da história fica comprometida, principalmente quando sabemos que, poucos parágrafos à frente, o personagem – que há dias sangra no seu leito – agirá como um super-herói: saltará janela e muros, fugirá da ilha em que o hospital está instalado e, chegando ao continente, caminhará longos quarteirões em busca de sua paixão.

Ao dedicar-se com tal empenho à sua vingança, Adolfo Caminha seguiu os passos de Aluísio Azevedo, e aprendeu com seu mestre a importância de coalhar o texto de imagens mórbidas. Assim, lá estão os “ímpetos vorazes de novilho solto” – ou, se preferirem, o “grande ímpeto selvagem de novilho insaciável” –, as “incongruências de macho em cio”, as “nostalgias de libertino fogoso”, a mulher masculinizada, de “pernas gordas e penugentas”, que se transforma numa “vaca do campo extraordinariamente excitada” e, “segurando os seios moles”, traz “um estranho fulgor no olhar de basilisco”. Tudo se animaliza, tudo se degrada, a fim de corroborar, à força, as teorias deterministas. Do “bodum africano”, passando pelo “hermafroditismo agudo”, chega-se às “sucções violentas”. E quando Bom Crioulo, fugido do hospital, percorre as ruas em busca de Aleixo, “pairava um cheiro forte de urina, assim como uma emanação agressiva de mictório público, envenenando a atmosfera, intoxicando a respiração”. É pena que, no final, quando o negro salta de navalha em punho sobre o amante, apresente, além do ciúme, o raríssimo sintoma de “estrabismo nervoso de alucinado”... Esse problema não poderia tê-lo impedido de acertar o alvo?

Toda a conhecida ladainha biologista do naturalismo polui a obra: como vimos, Bom Crioulo é o melhor contraponto à suposta “morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada”; certo personagem traz “no rosto imberbe de adolescente [...] uma precoce morbidez sintomática”; o grumete tem uma “vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro”; a natureza não só “impõe castigos”, mas “pode mais que a vontade humana”. Não estamos diante de afetos passíveis de serem controlados pela razão ou, ao menos, capazes de provocar dúvidas de ordem existencial ou moral, mas de uma “obsessão doentia” que “redobra com uma força prodigiosa”, “acorda zelos que pareciam estagnados” e “comove fibras que já tinham perdido antigas energias”. A luta de Bom Crioulo contra os seus instintos, anunciada com fanfarras no Capítulo III, não dura poucos parágrafos, de maneira que a homossexualidade se apresenta como um “ideal genésico” cuja força obriga o “selvagem de Zanzibar” a “cair em êxtase [...] diante de um ídolo sagrado pelo fetichismo africano”.  

Composição

Mas os defeitos de Bom Crioulo não se restringem à linguagem. O livro é composto sobre esquematismos e obviedades. Logo no início, à calmaria enfrentada pela corveta corresponde, evidentemente, a preguiça dos marujos. O oficial que preza a obediência da marujada precisa ser um disciplinador arrogante. Agostinho, um guardião também responsável por aplicar as chibatadas, não pode desaprovar o que é obrigado a fazer por ordens superiores, mas deve, necessariamente, ter a personalidade de um sádico. O feliz casal de homossexuais carece de um antagonista – e, claro, nada melhor do que o elemento feminino, a portuguesa Carolina, para assumir o posto, formando o trio de personagens a partir do qual se construirá a trama corriqueira: encontro – sedução – posse do objeto amoroso – separação momentânea – sedução do antagonista – ciúme descontrolado – tragédia/morte.

A história é tão previsível, que se cortássemos, além dos trechos de retórica vazia, as digressões que só reiteram as qualidades físicas dos marinheiros enamorados e seus repetitivos sentimentos, recíprocos ou não, o livro poderia perder dois terços de gordura e se transformar num conto de vinte ou trinta páginas.

Há também sérios problemas de passagem do tempo. Em menos de um mês, enquanto Bom Crioulo se encontra no hospital, Aleixo se torna “gordo, forte, sadio [...], músculos desenvolvidos como os de um acrobata [...], expressão admirável de robustez física” – e a única razão apresentada para essa mudança são os cuidados de Carolina. Antes, sem que se cumpra sequer um ano de convivência, Bom Crioulo consegue ver “crescer a seu lado Aleixo, assistindo-lhe o desenvolvimento prematuro de certos órgãos, o desabrochar da segunda idade”. Próximo do fim do livro, passadas as poucas semanas em que permaneceu no hospital, o protagonista já não sabe ao certo onde é a residência de Carolina, lugar no qual vivia muito antes de conhecer Aleixo – e age como se sua última noite ali tivesse ocorrido há décadas. Finalmente, parado defronte à casa, conversa com o funcionário da padaria e este lhe diz que o grumete e a portuguesa acordam tarde; o dia mal amanheceu, mas, surpresa!, Aleixo sai para a rua.

A vertigem do Mal

Enquanto relia Bom Crioulo, lembrei-me do ensaio – elogioso e demoníaco – de Georges Bataille sobre Jules Michelet e seu La sorcière (A feiticeira). Do princípio ao fim, Caminha parece guiado pela mesma paixão que, segundo Bataille, comandava Michelet: “a vertigem do Mal”. Entregue ao seu desejo de vingança, enquanto escrevia Adolfo Caminha talvez repetisse o gesto de Michelet: “No decurso do seu trabalho, acontecia faltar-lhe a inspiração: descia então de sua casa, dirigia-se a um mictório cujo cheiro era sufocante. Aspirava profundamente e, tendo-se assim ‘aproximado, o mais perto que podia, do objeto do seu horror’, voltava ao trabalho”.
 
Encontrar quem elogie tal subliteratura é uma evidência de quanto a nossa episteme se encontra deteriorada, submetida à mais ordinária doxa. Realmente, parcela da crítica literária abdicou do seu papel, preferindo destruir a autonomia da literatura e sujeitar a arte à deplorável ditadura do politicamente correto. Harold Bloom está certo quando diz que todos os padrões estéticos e a maioria dos padrões intelectuais estão sendo abandonados em nome de uma falsa e forçada harmonia social. E, completo, com um agravante: mente-se descaradamente aos jovens, levando-os a valorizar uma ficção medíocre. Tal obsessão significa, na prática, a renúncia à autonomia de pensamento – um desatino frente ao qual muitos se mostram indefesos.

maio 09, 2011

“A tradição é uma realidade viva”

Na audiência que concedeu aos membros do Instituto Litúrgico Santo Anselmo, no último dia 6 de maio, Bento XVI mostrou, novamente, equilíbrio, sabedoria e prudência. Para o papa, “a liturgia da Igreja vai mais além da própria ‘reforma conciliar’ (Constituição Sacrosanctum Concilium, 1), cujo objetivo, de fato, não era principalmente o de mudar os ritos e os gestos, mas sim renovar as mentalidades e colocar no centro da vida cristã e da pastoral a celebração do Mistério Pascal de Cristo. Infelizmente, talvez por nossa causa, Pastores e expertos, a Liturgia foi tomada mais como um objeto a ser reformado do que como um sujeito capaz de renovar a vida cristã”.

E Bento XVI acrescenta: “[...] A Liturgia, testemunho privilegiado da Tradição vivente da Igreja, fiel ao seu dever original de revelar e fazer presente no hodie [hoje] das vicissitudes humanas a opus Redemptionis [obra da Redenção], vive de uma relação correta e constante entre sã traditio [tradição] e legitima progressio [progresso legítimo], lucidamente explicitada pela Constituição conciliar no parágrafo 23. Com os dois termos, os Padres conciliares quiseram registrar seu programa de reforma, em equilíbrio com a grande tradição litúrgica do passado e do futuro. Não poucas vezes se contrapõe de maneira desonesta tradição e progresso. Na realidade, os dois conceitos se integram: a tradição é uma realidade viva, que por esse motivo inclui em si mesma o princípio do desenvolvimento, do progresso. É como dizer que o rio da tradição carrega em si também a sua fonte e tende à sua foz”.

Coerente com as ideias que expressa desde o início de seu pontificado, Bento XVI repete, dessa forma, o raciocínio explicitado no inesquecível discurso de 22 de dezembro de 2005: “[...] Por que a recepção do Concílio, em grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou como diríamos hoje da sua correta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas da recepção derivaram do fato de que duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão; a outra, silenciosamente, mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de definir como a ‘hermenêutica da descontinuidade e da ruptura’; não raro, ela pôde valer-se da simpatia dos mass media e também de uma parte da teologia moderna. Por outro lado, há a ‘hermenêutica da reforma’, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo porém sempre o mesmo, único sujeito do Povo de Deus a caminho. A hermenêutica da descontinuidade corre o risco de terminar numa ruptura entre a Igreja pré-conciliar e a Igreja pós-conciliar. Ela afirma que os textos do Concílio como tais ainda não seriam a verdadeira expressão do espírito do Concílio”.
 
De fato, é como se ouvíssemos, por trás dos discursos papais, as palavras de São Paulo a Timóteo: “Toma por modelo os ensinamentos salutares que recebeste de mim sobre a fé e o amor a Jesus Cristo. Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós”.

maio 08, 2011

“Não ceder jamais às recorrentes tentações da cultura hedonística”

O alerta do papa Bento XVI, em sua homilia de hoje, no Parque de São Giuliano, em Veneza, serve perfeitamente para nós, católicos brasileiros:

Também uma nação tradicionalmente católica pode experimentar, num sentido negativo, ou assimilar, quase de maneira inconsciente, os contragolpes da cultura que termina por introduzir uma maneira de pensar em que a mensagem evangélica é abertamente rechaçada ou obstaculizada de forma sub-reptícia. Sei quanto tem sido e quanto continua a ser grande o vosso compromisso em defender os valores perenes da fé cristã. Encorajo-vos a não ceder jamais às recorrentes tentações da cultura hedonística e aos chamados do consumismo materialista. Acolham a invitação do apóstolo Pedro, presente na segunda leitura de hoje, de se comportar “com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (1 Pe 1,17): invitação que se concretiza em uma vida vivida intensamente nos caminhos do nosso mundo, conscientes da meta a ser alcançada: a unidade com Deus, em Cristo crucificado e ressuscitado.

maio 06, 2011

Objeção de consciência e extremismo laicista

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de reconhecer as uniões estáveis de homossexuais, impõe a nós, católicos, o dever de manifestarmos nossa objeção de consciência. Estamos impedidos – moral, religiosa, filosófica e politicamente – de reconhecer a validade dessa decisão e, também, de cumprir qualquer obrigação legal a ela relacionada. Como afirmava o cardeal Alfonso López Trujillo, durante anos presidente do Pontifício Conselho para a Família, “não se podem impor coisas iníquas aos povos. E mais, precisamente porque são iníquas, a Igreja chama com urgência à liberdade de consciência e ao dever de opor-se”.

A posição do Magistério é clara: “Homens e mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Deve evitar-se, para com eles, qualquer atitude de injusta discriminação”. Contudo, “o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais”. E acrescenta: “O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimônio, significaria não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio comum da humanidade”, pois “nas uniões homossexuais estão totalmente ausentes os elementos biológicos e antropológicos do matrimônio e da família, que poderiam dar um fundamento racional ao reconhecimento legal dessas uniões. Estas não se encontram em condição de garantir de modo adequado a procriação e a sobrevivência da espécie humana”.

A decisão do STF, no entanto, criará novos problemas. No que se refere à adoção de filhos, por exemplo, “a falta da bipolaridade sexual cria obstáculos ao desenvolvimento normal das crianças eventualmente inseridas no interior dessas uniões. Falta-lhes, de fato, a experiência da maternidade ou paternidade. Inserir crianças nas uniões homossexuais através da adoção significa, na realidade, praticar a violência sobre essas crianças, no sentido de que se aproveita do seu estado de fraqueza para introduzi-las em ambientes que não favorecem o seu pleno desenvolvimento humano”.

Para aqueles que desejarem se aprofundar no tema da adoção, recomendo as entrevistas com Dale O’Leary, escritora e pesquisadora da Associação Médica Católica dos Estados Unidos, e Claudia Navarini, professora da Faculdade de Bioética do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum. E também o ensaio Intergenerational Sexual Contact: A Continuum Model of Participants and Experiences”, de Joan A. Nelson. (Ver nota logo abaixo.)

Extremismo laicista

Na verdade, o resultado da votação do Supremo, composto de juízes nomeados por governos mais ou menos esquerdistas, faz parte de um “movimento cultural e ideológico que busca instalar na agenda pública projetos que desnaturalizam as instituições”, como afirma Ignacio Arsuaga Rato, líder da ONG católica HazteOir. Assim, repete-se no Brasil o que acontece na Argentina e na Espanha: a internacional socialista pretende “instalar o relativismo numa ampla vertente de formas; acusar de violentos e extremistas todos aqueles que defendem valores cristãos; e impor uma nova ordem social”, em que nem mesmo restrições à liberdade de culto podem ser desconsideradas.

É o que nos espera – e contra o que devemos lutar: a imposição de um discurso único, totalitário, que vê nossas tradições culturais e nossos valores religiosos como males que precisam ser exterminados.

Nota: Recomendo também este ótimo artigo de monsenhor Ignacio Barreiro Carámbula: “¿Por qué la adopción homosexual no es un derecho?”. 

maio 04, 2011

Sofrimento imerecido, alegria e beleza

Bento XVI iniciou hoje uma nova série de catequeses. Como faz todas as semanas, o pontífice se dirigiu aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro, desta vez para falar sobre a oração.

Para os que conhecem a obra do cardeal Ratzinger – infelizmente pouco divulgada em nosso país, ainda hoje influenciado por uma teologia esquerdizante e contrária à tradição católica –, bem como suas falas nas audiências das quartas-feiras, nestes seis anos de papado, quando tratou, entre outros temas, das principais figuras da Patrística e dos grandes teólogos da Idade Média, não há nenhuma surpresa: ele consegue reunir erudição, clareza e rara capacidade de síntese.

Hoje, para se pronunciar sobre um dos temas mais caros à cristandade, Bento XVI começa falando sobre as antigas culturas pagãs – e parte da súplica de um egípcio cego para encontrar o princípio e núcleo de toda oração: “Que eu veja!”. Passa pela Mesopotâmia, chega à Grécia platônica, cita Eurípides e sua As troianas, recorda Marco Aurélio e alcança Proclo de Constantinopla (não o discípulo de São João Crisóstomo, mas o chefe da escola neoplatônica de Atenas, comentarista de Os elementos, de Euclides, e chamado de escolástico do helenismo).

“A vida humana é uma mescla de bem e mal, de sofrimento imerecido e de alegria e beleza, que de forma espontânea e irresistível nos impulsiona a pedir a Deus a luz e a força interiores que nos socorram na terra e abram uma esperança que ultrapasse os limites da morte”, diz Bento XVI.

Próximo de concluir a audiência, ressaltando como o homem, em diferentes épocas e culturas, sempre dá testemunho de sua dimensão religiosa – pois “não pode prescindir de perguntar-se sobre qual é o sentido da sua existência, que permanece obscuro e desconfortante se não se colocar em relação com o mistério de Deus e do seu projeto sobre o mundo” –, Bento XVI nos recorda, em breves linhas, o mistério da Revelação.

Mas esta primeira aula é apenas um sopro do que nos aguarda nas próximas semanas, quando ele discorrerá sobre as formas de encontro com Aquele que, ao manifestar-se a Elias, no Horeb, foi antecedido por grande e impetuoso furacão, capaz de fender montanhas e quebrar rochedos, por um terremoto, pelo fogo – até finalmente se apresentar como o murmúrio de uma brisa suave, diante da qual o profeta cobre seu rosto (1 Reis 19).

maio 02, 2011

“Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei!”

Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et tam nova, sero te amavi! Et ecce intus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa, quae fecisti, deformis irruebam. Mecum eras, et tecum non eram. Ea me tenebant longe a te, quae si in te non essent, non essent. Vocasti et clamasti et rupisti surdidatem meam, coruscasti, splenduisti et fugasti caecitatem meam; fragrasti, et duxi spiritum et anhelo tibi, gustavi, et esurio et sitio, tetigisti me, et exarsi in pacem tuam.

Sanctus Augustinus, Confessiones (X, 27. 38)

[Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Estavas dentro e eu fora te procurava. Precipitava-me eu disforme, sobre as coisas formosas que fizeste. Estavas comigo, contigo eu não estava. As criaturas retinham-me longe de ti, aquelas que não existiriam se não estivessem em ti. Chamaste e gritaste e rompeste a minha surdez. Cintilaste, resplandeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume, aspirei-o e anseio por ti. Provei, tenho fome e tenho sede. Tocaste-me e abrasei-me no desejo de tua paz.]