novembro 30, 2014

O escritor e seus princípios

"Permanecer numa cega, prazerosa e absurda fé na arte" - Juan Carlos Onetti 
Cada escritor estabelece, ao longo da carreira, seu conjunto de princípios. Nem todos o verbalizam ou escrevem. Juan Carlos Onetti, o uruguaio criador da mítica cidade de Santa María (no romance “A Vida Breve”), deixou gravado o seu credo na Revista Marcha, em 28 de julho de 1939:

“Permanecer frente a um tema, ao fragmento de vida que escolhemos como matéria do nosso trabalho, até extrair, dele ou de nós, a essência única e exata. Permanecer frente à vida, sustentando um estado de espírito que nada tenha a ver com o vão e inútil, o fácil, as panelinhas literárias, os elogios mútuos, as bobagens de mesa de café. Permanecer numa cega, prazerosa e absurda fé na arte, como numa tarefa sem sentido explicável, mas que deve ser aceita virilmente, porque sim, como se aceita o destino. Todo o resto é duração física, um pouco fatigante, virtude comum às tartarugas, aos carvalhos e aos erros.”

novembro 29, 2014

Como nasce a inspiração?

Borges: "No caso de um conto, eu conheço o princípio, o ponto de partida, conheço o fim, conheço a meta"
Como surge a idéia de um conto, de um romance, de um poema?

Cada escritor tem sua história, sua forma de inspiração.

Vejam o que Jorge Luis Borges fala:

“Começa por uma espécie de revelação. Mas eu uso essa palavra de uma maneira modesta, não ambiciosa. Ou seja, de repente eu sei que algo vai acontecer e que isso que vai acontecer pode ser, no caso de um conto, o princípio e o fim. No caso de um poema, não: é uma idéia mais geral, e às vezes tem sido a primeira linha. Ou seja, algo me é dado, e depois intervenho, talvez estrague tudo (ri). No caso de um conto, por exemplo, eu conheço o princípio, o ponto de partida, conheço o fim, conheço a meta. Mas depois tenho que descobrir, através dos meus muito limitados meios, o que acontece entre o começo e o final”.

O que Borges conta é apenas o nascimento, a primeira fulguração do texto.

Todo o complexo e estimulante jogo de construir a narrativa vem depois.

novembro 28, 2014

12 poemas para a vida inteira

"A beleza não se faz — ela é" (Emily Dickinson)
1. “Os homens ocos” [“The Hollow Men”] — T. S. Eliot
— Numa terra morta, homens vazios caminham em busca de esperança.

2. “O infinito” [“L’infinito”] — Giacomo Leopardi
— A doçura de perder-se no “eterno”, nas “estações já mortas” e no tempo presente.

3. “A uma passante” [“A une passante”] — Charles Baudelaire
— A beleza que sempre nos escapa; a beleza efêmera que poderia ter sido tudo.

4. “Pranto por Ignacio Sanchez Mejias” [“Llanto por Ignacio Sanchez Mejias”] — Federico García Lorca
— Uma elegia moderna; a dor insuperável, pungente, reiterada, pelo amigo morto.

5. “Rumo a Bizâncio” [“Sailing to Byzantium”] — W. B. Yeats
— Perdido numa geração relativista, o poeta anseia pela verdade eterna.

6. “A beleza não se faz — ela é” [“Beauty — be not caused — It is”] — Emily Dickinson
— A luta diária do escritor, de todo artista, sintetizada de forma genial.

7. “Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo” [“Tell all the Truth but tell it slant”] — Emily Dickinson
— Há uma didática para mostrar a Verdade.

8. “Tarde de maio” — Carlos Drummond de Andrade
— A experiência sempre anônima da tristeza. Caminhamos entre “desatentos”.

9. “Canção” — Cecília Meirelles
— O que resta quando os sonhos morrem?

10. “Poema de Natal” — Vinicius de Moraes
— Que sejamos “graves e simples”, não só no Natal.

11. “Profundamente” — Manuel Bandeira
— Onde estão os que um dia amamos, os que um dia foram tudo para nós?

12. “Última canção do beco” — Manuel Bandeira
— Um dos mais belos e mais perfeitos poemas da literatura de língua portuguesa. Para ser lido, relido e decorado. Exemplo de musicalidade, ritmo, fluidez e riqueza semântica.

novembro 26, 2014

O mistério do escritor

Ao mesmo tempo frágil e confiante, o escritor avança e repete seu "sim" ao ato de criar
Como surge um escritor?

O escritor nasce da dialética entre vocação — o conjunto de influências, em grande parte indetermináveis, que direciona sua forma de perceber a vida e de refletir sobre ela — e circunstância.

Mas tal reflexão, que devo a Ortega y Gasset, não explica tudo. No máximo, demarca a estrada por onde segue o escritor.

Permanece obscuro, portanto, como, em meio a fragilidades e incertezas, obrigado a decidir sozinho os rumos da sua obra, sentindo-se inseguro ou, raras vezes, confiante, o escritor sempre repete seu “sim” irrepreensível ao ato de criar.

É um mistério. Mas é o mistério que ele deseja.

novembro 25, 2014

O desejo do escritor é desvendar a existência

Como o fotógrafo, o escritor deseja fazer sua própria interpretação da vida
O fotógrafo Henri Cartier-Bresson dizia que, na verdade, não era a foto em si que o interessava. O que ele queria era “capturar uma fração de segundo do real”.

O desejo do escritor é semelhante. Ele não está — ou não deveria estar — preocupado com o livro em si, com a obra exposta numa reluzente livraria. O que o escritor almeja é desvendar um ou mais aspectos da existência, fazer sua própria interpretação da vida.

Aliás, o trabalho do escritor é semelhante ao do fotógrafo: o diafragma da câmera não escolhe sozinho a cena a ser capturada — e, para cada imagem escolhida, dezenas são desprezadas.

Se fosse de outra maneira, se nos bastasse o mero retrato da realidade, não precisaríamos da literatura e de outras formas de arte. Bastaria colocar câmeras em cada esquina, em cada casa, e permitir que qualquer um assistisse o que quisesse, quando quisesse.

A inutilidade de algo assim é tão evidente, que até mesmo um programa vulgar como Big Brother Brasil está sujeito a uma série de manipulações e provas, e supostos interrogatórios, traições e acordos — enfim, um complexo sistema ficcional, ainda que ordinário e grosseiro — para se tornar atraente.

Voltando à ficção literária, se quiséssemos listar os diferentes aspectos da vida humana, bastaria reler as principais narrativas. Um conto breve como “O colar”, de Maupassant, fala mais sobre fuga da realidade, orgulho e amor do que dezenas de tratados de psicologia.

Não foi a obra enquanto produto final que despertou o interesse de Maupassant, mas a possibilidade de capturar um sentimento, um comportamento, determinada situação, de uma forma que, ele intuía, só Maupassant poderia apreender.

novembro 24, 2014

O salto da imaginação à escrita

Os campanários de Martinville formam o momento libertador em que a imaginação se torna palavra escrita
Como o desejo de escrever se transforma em ato concreto?

No primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, o narrador conta sua experiência: ele recorda sua infância, quando escrever era um anseio atormentador.

Cada detalhe inspira o garoto. No entanto, há um abismo entre o pensamento e o gesto de empunhar o lápis. Sua angústia o persegue — e ser incapaz de concretizar o desejo de escrever muitas vezes o aniquila:

“Parecia-me então que eu existia da mesma forma que os outros homens, envelheceria e morreria como eles e que, no meio deles, apenas pertencia ao número dos que não têm pendor para escrever. E assim, desanimado, renunciava para sempre à literatura […]”.

A aflição cresce. A realidade está sempre a chamá-lo.

Como todo candidato a escritor que aguarda a inspiração genial ou o tema perfeito, ele se confunde. Os elementos, entretanto, acumulam-se — até que, num transbordamento, tudo se precipita quando, certo dia, vê as torres da igreja de Martinville.

Os campanários de Martinville formam esse momento libertador, em que, finalmente, imagens, sons, odores e sentimentos se transformam em palavras escritas.

O trecho interessará a quem deseja escrever e está acostumado à ansiedade de não conseguir saltar do sentimento ao texto. Pode ser lido neste link.

novembro 22, 2014

O bom escritor sabe que é impossível ser genial o tempo inteiro

O que move o bom escritor é apenas o desejo de contar sua história da melhor forma possível
Em Os Testamentos Traídos, Milan Kundera conta a história do seu professor de música, um judeu perseguido pelos nazistas que, antes de partir para o Campo de Concentração de Terezin, é obrigado a mudar de uma residência a outra, sempre levando consigo seu pequeno piano.

Esse professor, certo dia, no final da aula, diz ao menino: “Há muitos trechos surpreendentemente fracos em Beethoven. Mas são os trechos fracos que dão destaque aos trechos fortes. É como um campo sem o qual a bela árvore que nele cresce não nos daria prazer”.

Ora, não é assim com as obras literárias? Não é assim com o conjunto da obra de um escritor?

Quando alguém começa a escrever, sonha em criar obras indispensáveis, perfeitas e inovadoras em seus mínimos detalhes — mas essa preocupação muitas vezes inibe sua criatividade e estraga o que poderia ser espontâneo.

O bom escritor, ao contrário, sabe que é impossível ser genial o tempo inteiro. Sabe também que a chamada originalidade é uma quimera.

Aliás, o que move o bom escritor é apenas o desejo de contar sua história da melhor forma possível. Assim ele planta seu campo, de forma espontânea — e ali podem surgir algumas árvores raras.

novembro 21, 2014

2 pecados que o escritor não pode cometer

São apenas 2.

O escritor — se deseja ser realmente um profissional — precisa evitar a impaciência e a indolência.

Ele não pode ter pressa se quiser atingir seus objetivos. Sofreguidão e escrita não combinam.

E não pode ser preguiçoso: precisa estar todos os dias, no mesmo horário, diante do papel em branco ou da tela do computador.

Kafka estava certo: “Existem dois pecados capitais, dos quais todos os outros derivam: impaciência e indolência. Por causa da impaciência os homens foram expulsos do paraíso, por causa da indolência eles não voltam”.

novembro 20, 2014

O pessimismo, remédio ideal para o populismo

O ensaio de Paulo Prado é, como dizia Ortega y Gasset, "uma pupila vigilante aberta sobre a vida"
No Jornal Rascunho deste mês, escrevo sobre Retrato do Brasil — ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado, livro que pertence à tradição montaigniana, isto é, anseia examinar as questões da realidade filtrando-as numa visão pessoal, repleta de associações inesperadas e problematizadoras.

Como afirmo em meu texto, não se deve esperar, portanto, desse trabalho, interpretações que se pretendam definitivas — mas, sim, intuições capazes de produzir no leitor o mesmo desejo que motivou o ensaísta: não aceitar passivamente sua realidade; ou, como dizia Ortega y Gasset ao comentar as características do ensaio, ser “uma pupila vigilante aberta sobre a vida”.

O pessimismo de Paulo Prado, é verdade, vibra em todo o livro. Mas, hoje, passadas quase duas décadas de governos populistas prontos a comemorar a ignorância e tratar vícios como virtudes heróicas, uma boa dose de visão pessimista poderia garantir um mínimo de realismo ao Brasil.

novembro 19, 2014

O que é melhor: bondade ou inteligência?

Para Hermann Broch, "uma arte que não é capaz de reproduzir a totalidade do mundo não é arte"
Hermann Broch dizia que “uma arte que não é capaz de reproduzir a totalidade do mundo não é arte”. Esse anseio permanente de completude dirigiu sua vida, uma luta constante para superar suas contradições, para que sua existência fosse o reflexo integral do seu pensamento. Talvez por esse motivo ele tenha se transformado não apenas no genial autor de A Morte de Virgílio, mas também num homem extremamente solidário.

O ensaísta e professor Erich von Kahler, que foi seu amigo — e também de Albert Einstein e Thomas Mann —, dizia que “você poderia encontrar Broch perdido numa grande cidade, armado de guias e horários de trens, atravessando enormes distâncias nos Estado Unidos, sempre para dar consolo a seus amigos ou pedir favores para eles. Ou podia ser encontrado também em sua casa, depois de quinze horas de trabalho diante da máquina de escrever, respondendo com extrema pontualidade à sua correspondência. Por trás dessa tranqüila aparência, com o cachimbo na boca e o olhar penetrante, eu via a tempestade de um abismo interior, mesclado de felicidade e do consolo da sua solidariedade fraternal”.

De fato, há uma história da tradição rabínica de que Hermann Broch gostava muito e que, de certa forma, resume sua vida: “Um estrangeiro visita um rabino muito sábio e lhe pergunta: — Mestre, o que é melhor, a bondade ou a inteligência? O rabino responde: claro que a inteligência, meu filho, pois ela é o centro da vida. Há um momento de silêncio. O rabino parece pensar. E antes que o estrangeiro agradeça e vá embora, o rabino completa: — Mas, se você só tem a inteligência, sem a bondade, é como se você tivesse a chave do quarto que está no centro da sua casa, mas tivesse perdido a chave da porta da entrada”.

Esse é Hermann Broch. Ele tinha as duas chaves: a da inteligência e a da bondade.

novembro 18, 2014

11 dicas para novos escritores

Não seja passivo(a) em relação à escrita. Não espere a fada-madrinha dos escritores entrar pela janela
Você quer ser escritor — mas não sabe como começar.

Sentado na frente da folha em branco ou da tela do computador, as idéias não chegam.

Fiz esta lista de 11 dicas pensando em você — numa forma de diminuir sua angústia e mostrar que você pode, sim, se tornar um escritor.

Leia com atenção cada item.

Depois, coragem: comece a escrever!

1. Acredite no poder das sinapses. Os neurônios conversam entre si, criam conexões inusitadas a cada milésimo de segundo. Mas precisam ser estimulados. 

Não, você não precisa se submeter a um tratamento de eletrochoques, mas deve estar aberto à realidade. 

Certa música, certa obra de arte, uma situação, uma frase solta que você escuta no ônibus ou no balcão da padaria: tudo pode desencadear a imaginação. Todos nós temos gatilhos emocionais que liberam ondas de fantasia. Não despreze nenhum deles — inclusive os que parecem infantis ou óbvios. 

Lembre-se do exemplo sináptico de Victor Hugo, que já se tornou clássico: no prefácio de O Corcunda de Notre-Dame, o escritor conta que o livro nasceu quando ele encontrou, ao explorar a Catedral de Notre-Dame de Paris, a palavra “fatalidade” gravada à mão numa parede. A forte impressão causada por essa descoberta fez com que começasse a imaginar a história.

2. Todo escritor é, antes de tudo, bom observador. Mas não se trata apenas de espreitar. É preciso dialogar, em silêncio, com os fatos, com as pessoas. 

Coloque-se na pele delas e tente compreender suas reações. Depois, imagine como você reagiria. E imagine como um escritor descreveria você. Esse exercício constante — analisar o real e você mesmo — aperfeiçoará seu poder de observação.

3. Abandone a idéia de que a vida é simples e de que tudo é evidente. Nada é simples. Por trás de cada gesto feito de maneira impensada há centenas de influências, escolhas, certezas, temores, dúvidas, interesses, desejos.

4. Anote tudo. Sempre. Não se preocupe se, no fim do dia, as anotações parecem incoerentes, sem nexo. Guarde-as em algum lugar. No final de trinta, quarenta dias, coloque-as sobre a escrivaninha: você descobrirá semelhanças — ou uma tendência. Por que não segui-la?

5. Leia. Leia muito. E não tenha receio, inclusive, de se inspirar no que lê. Eu disse “inspirar”, não “copiar”.

6. Não tenha medo de contar histórias. Não tenha medo, inclusive, do que pensarão sobre suas histórias. Comece com tramas simples e poucos personagens. Pode ser um único personagem. Mas evite cair na tentação do discurso em primeira pessoa, pois ele tem uma aparência de facilidade completamente enganosa.

7. Repito: apenas conte uma história. Deixe as invencionices vanguardistas e os malabarismos lingüísticos para mais tarde, quando estiver seguro(a) do que é capaz. Lembre-se: Ulysses não foi o primeiro livro de James Joyce.

8. Tenha um plano, ele ajudará você. Mas sinta-se livre para mudá-lo. Nenhum escritor sabe, com todos os detalhes, o começo, o meio e o fim da sua história. 

O som e a fúria, de William Faulkner, começou, segundo o próprio escritor, “com uma simples imagem mental: os fundilhos enlameados da calcinha de uma menina pequena trepada numa pereira, de onde podia ver, por uma janela, o local onde se realizava o funeral de sua avó e descrever o que estava acontecendo aos seus irmãos, no chão, embaixo”. Depois, Faulkner tentou contar a história que nasceu dessa imagem utilizando quatro narradores diferentes — e, ainda insatisfeito, adicionou um apêndice 15 anos depois de o livro ter sido publicado.

9. Ao escrever, não se preocupe em seguir a ordem lógica — ou cronológica — do seu enredo. Você tem poder absoluto sobre sua criação: pode matá-la e, sete meses depois, contar seu nascimento.

10. Não seja passivo(a) em relação à escrita — não espere a fada-madrinha dos escritores entrar pela janela. Escolha um local, crie seu ambiente. (Minha vizinha, quando eu era menino, estudava com o rádio ligado e tirava ótimas notas. Eu, ao contrário, sempre precisei de silêncio.) Depois, estabeleça um horário e cumpra-o. Não importa se você apenas ficar olhando para o papel em branco.

11. Voltando ao primeiro ponto, não despreze a realidade.

Mas lembre-se do que Henry James escreveu: “A experiência nunca é limitada e nunca é completa; ela é uma imensa sensibilidade, uma espécie de vasta teia de aranha, da mais fina seda, suspensa no quarto de nossa consciência, apanhando qualquer partícula do ar no seu tecido. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa — muito mais quando acontece de ela ser a mente de um gênio — ela leva para si mesma os mais tênues vestígios de vida, ela converte as próprias pulsações do ar em revelações”.

Este é o começo. Confie em você e vá em frente. Há milhares de leitores esperando por um bom escritor — alguém disposto a contar boas histórias.

novembro 17, 2014

Nenhum escritor é, apenas, uma máquina de produzir palavras

Georges Simenon, criador do famoso Comissário Maigret: exemplo de disciplina
Cada autor descobre, com a experiência, a forma de escrever mais adequada à sua personalidade. É preciso, antes de tudo, não lutar contra as próprias idiossincrasias. E encontrar, sem desprezá-las, a disciplina que resultará numa produção constante, diária.

Poucos escritores, entretanto, alcançam um comportamento metódico semelhante ao de Georges Simenon, o famoso criador do Comissário Maigret. Primeiro, ele escolhia, em sua imaginação, uma atmosfera: uma paisagem, um bairro da infância, certa estação do ano em determinada cidade… Ali, inseria um tema, uma das preocupações que trazia consigo — nada específico, mas que se apresentasse como um problema. Tendo acrescentado o tema à paisagem, vinham os personagens, imaginados ou baseados em pessoas reais. Esses três elementos se unem, então, e começam a se transformar no romance. Dois dias depois, sem escrever uma nota, Simenon tem o esboço pronto em sua mente — precisou recorrer apenas a algumas listas telefônicas (para encontrar o nome dos personagens) e a um mapa da cidade escolhida.

O mais impressionante, contudo, ainda está por ocorrer. Ele diz: “Na véspera do primeiro dia, sei o que vai acontecer no primeiro capítulo. Daí, dia após dia, capítulo após capítulo, descubro o que vem em seguida. Depois de iniciado um romance, escrevo um capítulo por dia, sem nunca perder um dia. Como é um esforço violento, tenho de seguir o ritmo do romance”.

Parece fácil, não é mesmo? Mas, acreditem, não há milagres. Se ele, por algum motivo, fosse obrigado a interromper o processo; se ficasse, por exemplo, doente por 48 horas, tudo se perderia. Seria obrigado a jogar fora os capítulos produzidos — e jamais retornaria ao romance.

O que um método oferece como solução, também cobra na forma de uma fraqueza. Nenhum escritor é, apenas, uma máquina de produzir palavras e sentenças.

novembro 16, 2014

Existe felicidade em escrever?

"Minhas dúvidas formam um círculo em torno de cada palavra." — Franz Kafka
O trabalho diário com as palavras não é fácil. Em abril de 1852, enquanto compõe Madame Bovary, Flaubert escreve a Louise Colet: “Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem”.

Esse tormento renasce, maior ou menor, no coração de cada escritor. Kafka anota, em novembro de 1910: “Quando sento-me diante da escrivaninha, meus ânimos não são melhores do que os do indivíduo que cai no meio da ‘Place de l’Opéra’ e quebra as duas pernas”.

Mas por que Kafka insistiu, ainda que escutasse “as consoantes se chocando com ruído metálico”? “Minhas dúvidas formam um círculo em torno de cada palavra; vejo-as antes que a palavra […]”, ele afirma e prossegue, cheio de incertezas. Sentindo-se “estéril como uma pedra”, Flaubert também foi adiante. E hoje, quando lemos o resultado dessas angústias, perguntamos qual o motivo de terem feito o que não é prazeroso.

Para um tempo como o nosso, em que o hedonismo quase sempre dita as escolhas, é difícil compreender. Mas o escritor sabe a resposta. Sabe que o prazer é o que menos importa na felicidade — como lembra Ortega y Gasset em seu ensaio “Sobre la caza” —, porque a felicidade consiste sempre “numa atuação, numa energia e num esforço”.

novembro 15, 2014

Literatura não é geração espontânea

Ler bons escritores e aprender com eles não significa copiá-los a vida inteira
Entre 2011 e 2012, um jovem amigo me procurou para falar sobre o curso que havia feito: um workshop de criação literária, cujo professor era — ainda é — um escritor de fama razoável. Notei, ao telefone, que havia certa urgência na voz dele; e marcamos um café para o dia seguinte.

Meu amigo estava angustiado. Como todo o jovem que escreve e deseja se aperfeiçoar, ele queria mais do que um curso: queria um norte, alguém experiente que lhe dissesse “siga por aqui”. Mas o workshop, que havia durado 4 horas, fora decepcionante.

Logo que sentamos à mesa, ele disse: “Sabe como o curso começou? Sabe qual foi a primeira coisa que ele falou?”. Eu respondi: “O quê?”. Meu amigo, com os olhos saltando e a boca cheia de indignação: “Ele foi para o meio da classe, ergueu os braços e falou como se fosse Moisés no alto do Monte Sinai: — Esqueçam tudo que vocês leram até hoje! Esqueçam todos os escritores que existiram antes de vocês! Vocês são os primeiros escritores na face da Terra! E hoje vão aprender que não existe, nunca existiu e jamais existirá um escritor melhor do que vocês!”. Eu já estava rindo, mas respondi: “Não acredito...”.

Os detalhes do cursinho, alguns insanos, não cabem aqui. Mas depois do café, no metrô de volta para casa, comecei a pensar em tudo. Não era possível que um escritor se dispusesse a começar seu workshop enganando os alunos. Aquela proclamação inicial não havia sido um conjunto de frases de efeito — ele realmente insistiu que os jovens deveriam parar de ler, pois “não podiam seguir modelos”.

Quando desci na estação perto de casa, já havia planejado o meu próprio workshop. Foi assim que nasceu o curso Bases da Criação Literária e todos os outros: com o objetivo de ir na contramão do que se ensina atualmente; mostrar aos alunos que não é possível começar do nada; que literatura não é geração espontânea; que ler os bons escritores e aprender com eles não significa copiá-los a vida inteira. E, principalmente, que existem forças, elementos que estão sempre presentes quando escrevemos — e ter consciência deles amplia o poder do escritor sobre o seu próprio processo criativo.

novembro 13, 2014

Como o escritor deve ler?

Há várias formas de leitura. Lemos para passar o tempo, para escapar de nós mesmos, para nos afastar de preocupações e angústias. Ou, ao contrário, para nos aproximar ainda mais do que somos ou desejamos ser. Num dia em que as idéias estão emperradas, o início do “Endymion”, de John Keats, produz, para mim, o mesmo efeito de uma viagem ensolarada.

Mas como o escritor deve ler?

Talvez deseje apenas o entretenimento, mas o melhor que pode fazer por si mesmo é ler com o lápis na mão e o caderno de anotações ao lado, decidido a observar a construção de cada cena, de cada personagem, disposto a ir e voltar nas páginas, como o viajante que, tendo apenas a bússola e um mapa cheio de falhas, é obrigado a ir e voltar sobre seus próprios passos.

A leitura inocente não é mais possível para o escritor que deseja aprender. Sua tarefa é decifrar o segredo dos que o antecederam. E aprender com eles, sem medo de ser influenciado. Sua personalidade e o exercício constante da escrita se encarregarão de transformar as lições que estudou no seu próprio estilo.

novembro 12, 2014

Escritores e disciplina

No último final de semana, lembrei-me, por várias razões, de Ernest Hemingway. Muitos não sabem que ele escrevia de pé, apoiado a uma espécie de atril ou qualquer outro suporte em que, primeiro, pudesse usar lápis e papel — e depois, quando o texto começasse a fluir com arrebatamento, passar à máquina de escrever. Começava no nascer do sol e prosseguia, sem parar, até algum horário em torno do meio-dia: “Escrevo até chegar a um momento em que, ainda não tendo perdido o gás, posso antecipar o que vem em seguida”. Anotava o número diário de palavras, fazia hora extra quando, por algum motivo, não poderia escrever no dia seguinte — e, manhã após manhã, ao reiniciar o trabalho, reescrevia o que produzira no dia anterior. Questionado sobre seu método, ele não deixa dúvidas: “Disciplina se conquista”.

Esse comportamento enérgico revela muito da personalidade de Hemingway — e também serve como estímulo aos escritores que estão sempre inventando uma desculpa para a própria indolência. A eles, Hemingway dedicou sua ironia: “O fracasso e a covardia bem disfarçada são mais humanos e mais amados”.

novembro 11, 2014

Estilo ou apenas o linguajar instintivo?

Muitos defendem a ausência de estilo no texto literário. Em nome dessa tese duvidosa, argumentam em favor do coloquialismo — um coloquialismo absoluto, não só livre de supostas artificialidades, mas que incorpore gírias, termos chulos e o calão dos grupos sociais presentes na narrativa.

A tese tem dois problemas: quando a linguagem coloquial se impõe, já não expressa mais naturalidade; tornou-se um estilo. Além disso, a quem interessa, por exemplo, um diálogo que seja apenas a cópia fiel da conversa que acabamos de ouvir no balcão da padaria? A quem interessa uma história narrada com o vocabulário específico de certo grupo de pessoas, a não ser a esses mesmos indivíduos? Dito de outra forma, se publicada, tal narrativa interessará a um número restrito de leitores; ou, por tempo determinado, a curiosos inocentes; ou por longo tempo, mas apenas a antropólogos, linguistas e sociólogos, que a utilizarão como documento em suas pesquisas.

Como dizia Nabokov, “a perfeição está no estilo e não, como só os tolos defendem, na espontaneidade, pois o espontâneo é o tagarelar do cronista”. Se o linguajar instintivo fosse a melhor solução, as sutilezas e dissimulações machadianas estariam hoje esquecidas — e o Bruxo do Cosme Velho não teria perdido seu tempo compondo, dentre outras frases, este famoso quiasmo: “Eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”.

novembro 10, 2014

Escritores e gramática

Sempre insisto com meus alunos sobre a questão da gramática. Muitos acreditam que se tornarão ótimos escritores apenas estudando Napoleão Mendes de Almeida. “Mas o que você quer ser”, eu pergunto, “um escritor ou um gramático?”. Um escritor não precisa conhecer a definição de verbo defectivo — mas precisa ao menos intuir, graças a seu convívio diário com a língua, que certos verbos não apresentam todas as formas de tempo, de pessoa, etc. Ele sabe que seu personagem, referindo-se à falência de sua empresa, só pode dizer “eu fali”, no passado, pois, no presente, esse verbo existe apenas quando usamos “nós” ou “vós”. Esta é uma forma de conhecer como os verbos defectivos funcionam. E uma dúvida facilmente resolvível em qualquer dicionário da Web, pois todos oferecem a conjugação dos verbos. O mesmo acontece quando se trata da pontuação. O jovem escritor pode decorar tratados sobre o uso da vírgula — mas é a leitura atenta dos bons escritores que o ensinará a pontuar. Visitar os capítulos da gramática, principalmente aqueles — a maioria — que não foram explicados na escola, é meritório e certamente ajuda. Mas o bom escritor precisa ir muito além de um conjunto de prescrições e regras.

novembro 09, 2014

O segredo do poema

“Nenhum poema revelará o seu segredo a um leitor que o aborda determinado a não se deixar iludir, encarando o poeta como um potencial trapaceiro. Devemos arriscar-nos a ser iludidos se quisermos alcançar alguma coisa.” — C. S. Lewis

novembro 07, 2014

Descobrir a voz interior

A maior dificuldade que um escritor enfrenta é descobrir sua própria voz. Uma voz que ele modulará a cada novo narrador, a cada nova trama. Estamos sempre ouvindo outras vozes — ou pensando sobre como nossa voz deveria se expressar, com que inflexões, obedecendo a quais nuances. É preciso silenciar a tagarelice da própria mente e do mundo exterior. Sozinho, em silêncio e rodeado pelo silêncio, olhando a página ou a tela em branco, o escritor deve enfrentar a primeira tarefa: deixar sua voz vir à tona. Deixar ela emergir das regiões obscuras que, quase sempre, esquecemos de visitar. Diferente do que imaginamos, contudo, não se trata de uma descida ao Inferno. Não. Passo a passo, descobrir a voz interior é uma subida rumo a pontos mais altos, onde o horizonte se amplia e a luz revela o que não veríamos se estivéssemos ao rés do chão.

novembro 06, 2014

A beleza do mundo

A beleza do mundo não é um atributo da própria matéria. É uma relação do mundo com nossa sensibilidade, essa sensibilidade que depende da estrutura do nosso corpo e da nossa alma.” — Simone Weil

novembro 04, 2014

Louis Lavelle e a importância da escrita

“A cada um de nós a verdade aparece por clarões: mas nosso espírito recai quase imediatamente em seu estado natural de inércia e obscuridade. Sentimo-nos, então, como que abandonados: e o esforço doloroso que fazemos para reencontrar a luz perdida revela-nos tão somente a nossa impotência. No entanto, se conseguimos captar essa luz pela escrita, tornamo-nos capazes de reanimá-la quando ela parecia extinta. Existem momentos privilegiados em que a verdade passa diante de nós e nos roça, para logo escapar; a escrita nos permite fazê-la renascer indefinidamente.”

novembro 03, 2014

O melhor caderno de anotações

Um dos instrumentos de escrita imprescindíveis, mesmo quando estamos cada vez mais acostumados a escrever em smartphones e tablets, continua sendo o velho caderno de anotações. Demorei anos até encontrar um que me agradasse completamente, o que aconteceu em 2005, quando ganhei de minha mulher o meu primeiro moleskine.

Não se trata de um caderno qualquer; seus tamanhos e modelos adéquam-se perfeitamente a diferentes atividades, do desenho à escrita, da música ao diário de viagem. São confeccionados de maneira a reunir praticidade, conforto e uma beleza sóbria, garantida, nos modelos clássicos, pela capa preta que envolve o papel livre de acidez.

Não bastassem essas características — além de outros detalhes, como o elástico que fecha o volume e o envelope colado na parte interna da contracapa —, o moleskine traz a tradição de ter sido usado, dentre outros, por Hemingway, Van Gogh e Breton.

O escritor Bruce Chatwin, mais conhecido por seus relatos de viagem, conta um pouco da sua experiência com esses cadernos em O Rastro dos Cantos: “Cada vez que ia a Paris, comprava uma nova leva numa papeterie da rue de l’Ancienne Comédie. As páginas eram quadriculadas, e a capa e a contracapa eram mantidas fechadas por meio de um elástico. Eu os tinha numerado em séries. Escrevia meu nome e endereço na folha de rosto, oferecendo uma recompensa a quem o achasse. Perder um passaporte era a menor das preocupações: perder um caderno de anotações era uma catástrofe”.

Mas a verdadeira catástrofe ainda estava por vir: “Alguns meses antes de minha partida para a Austrália, a proprietária de uma papeterie disse que o vrai moleskine estava cada vez mais difícil de achar. Havia um fornecedor: uma pequena empresa familiar em Tours. Demoravam muito a responder cartas. ‘Gostaria de encomendar cem’, eu disse à madame. ‘Cem vão durar uma vida.’ Ela prometeu que telefonaria para Tours sem delonga, naquela tarde. No almoço, tive uma experiência temperante. O maître da Brasserie Lipp não mais me reconhecia: Non, monsieur, il n’y a pas de place. Às cinco, honrei meu compromisso com madame. O fabricante havia morrido. Seus herdeiros tinham vendido o negócio. Ela tirou os óculos e, quase como se estivesse de luto, disse: Le vrai moleskine n’est plus.”

Falecido em 1989, Chatwin não pôde experimentar a alegria de ver o retorno do vrai moleskine, desta vez pelas mãos de uma empresa italiana, a Modo & Modo, que reiniciou a produção em 1998.