janeiro 12, 2015

Em literatura, tudo é, de alguma forma, autobiográfico

A tarefa do escritor é permitir que realidade e ficção se interpenetrem
O escritor sempre parte da sua experiência; sempre fala, em alguma medida, de si mesmo.

Ele transforma realidade em ficção — e usa, como filtro, o seu olhar.

Na verdade, os próprios escritores realistas — com sua pretensão de esquadrinhar sem lirismo o real, de forma objetiva, sem utilizar simbolismos — repetiram o que a ficção faz há séculos: filtraram a vida utilizando uma simbólica pessoal, uma forma particular de entender a realidade.

Há, claro, diferentes gradações na maneira como os escritores utilizam a realidade e suas próprias experiências. Mas literatura e realidade estão inextricavelmente ligadas.

Aos leitores, contudo, não importa o quanto a história é baseada em fatos reais ou autobiográficos.

Pode ser curioso saber que certa personagem medíocre é loira e gosta de usar camisolas verdes porque a mãe do autor, que ele considerava fútil e mesquinha, era loira e tinha um guarda-roupa repleto de vestidos verdes...

Mas preocupar-se com essas filigranas quase sempre não passa de bizantinismo. Tais informações serão úteis, no futuro, se o escritor merecer a honra — ou a desonra — de ser biografado.

O que interessa — para o leitor e para o crítico — é a história em si.

O que importa é se a história está bem contada; se personagens, cenários, diálogos e voz narrativa criam a verossimilhança capaz de convencer, arrebatar.

Leitores e críticos buscam histórias que derrotem as visões estereotipadas da vida, que desprezem os lugares-comuns, que observem e reconstruam a realidade sob um novo olhar, sob uma perspectiva nunca antes utilizada.

Só esse enfoque pessoal e incomparável pode transformar um fato aparentemente banal numa história aliciante, digna de ser lida e relida por gerações.

Não, não se trata de fazer a cópia exata da realidade — o que, aliás, é impossível —, mas de transformá-la até o que podemos chamar de “ponto ideal”, um grau de otimização que não pode ser fixado, pois depende de cada história, de cada escritor, de cada voz narrativa.

Em que medida uma história é autobiográfica ou não, isso, repito, interessa aos biógrafos — e a certas vazias discussões acadêmicas.

Você certamente já ouviu falar em autoficção. Um termo moderno, pretensamente iluminador. Na verdade, uma expressão que, quando não confunde, afirma o óbvio.

Em teoria literária, com o advento do estruturalismo, os teóricos se especializaram em criar um jargão hermético e vazio.

Ler alguns desses estudiosos é como ouvir uma pitonisa: crédulos escutam boquiabertos e, sugestionáveis, têm a impressão de que, sob a fala incompreensível, a verdade lateja semelhante a um mistério milenar, pronto a ser esclarecido.

Basta, entretanto, ter uma dose mínima de desconfiança para refletir e chegar à conclusão de que tudo se resume a verniz intelectualista.

É o que acontece com o termo autoficção.

Sabe por quê? Porque toda a literatura é, no fundo, autoficção.

Mas os teóricos modernos acreditam que, para entender um fato, para esclarecer uma tendência, basta criar um termo específico ou uma nova terminologia.

Por isso falam em autoficção: para justificar, com um nome curioso, a pobreza de parte da literatura contemporânea, cujos autores preferem, como dizia Alcântara Machado, se flagelar, “desnudando os seqüestros e complexos numa expiação pública para ser bem expiatória”.

Com o ar superior de quem reinventou a roda, alguns teóricos olham para essa literatura pequena — em que o autor parece repetir “eu, eu, eu, eu, eu...” — e dizem: “Ah, isto é autoficção. É um novo gênero literário. Que coisa linda”.

Eles esquecem que, em literatura, tudo é, de alguma forma, autobiográfico. 

Todos fabulam nesta vida. E o escritor ainda mais, pois é a sua profissão. Sua tarefa é mesclar realidade e fantasia — permitir que realidade e imaginação se interpenetrem, se contaminem.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom o artigo, parabéns, Rodrigo! Ando cansada dessas perguntas: seu livro é autobiográfico ou não? Isso é verdade ou não é? Nunca entendo de que "verdade" estão falando. Em literatura, nem sempre "verdade" é verdade, ou pode ser, quem sabe... O que é verdade? O que interessa é a qualidade, sempre. Não sei preencher comentário, por isso assino aqui mesmo: Rosângela Vieira Rocha